A RELEVÂNCIA DA DICOTOMIA ESQUERDA DIREITA

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No Brasil os termos esquerda e direita têm sido mal utilizados por diversas razões. O cientista político Bolivar Lamounier inclui, entre elas, até a superficialidade do conhecimento de alguns grupos ideológicos. Quaisquer que sejam as causas do mal uso da dicotomia, é bom que fique um pouco mais claro o que os conceitos significam atualmente. Lembrando o inesquecível Paulo Francis, quando dizia que ‘o Brasil era o único país do mundo onde as esquerdas ainda levavam o comunismo a sério’, é possível indicar algumas características comuns à maioria dos pensamentos de grupos denominados de esquerda. Estamos falando de indivíduos sérios, no sentido de acreditarem em um conjunto de princípios e regras de ações públicas que julgam que melhoraria a vida dos grupos sociais que os adotassem. Da mesma forma, as crenças em um conjunto de princípios e valores alternativos valem para os grupos denominados de liberais, termo aqui usado porque o conceito de “direita” foi politicamente deturpado à ponto de, praticamente, inviabilizar seu uso sem associações pejorativas.

Algumas características são comuns aos pensamentos do grupos autodenominados de esquerdistas:

(i) acreditam que as organizações de governos devem ter um papel preponderante tanto na indicação quanto na alocação econômica dos recursos primários da sociedade – recursos humanos, físicos, financeiros e naturais – e, acima de tudo, que

(ii) as pessoas devem, ou precisam, delegar a um(alguns) sub-grupo(s) da sociedade, especialmente a um ou alguns partidos e de forma mais ou menos definitiva, o direito de escolher e implementar as ações públicas que julgam melhor para a sociedade.

Os liberais, por seu lado, acreditam que as escolhas sociais e políticas devem ser feitas por todos os indivíduos que compõem as populações, tanto por delegação representativa por prazo determinado, por meio do voto livre e universal, e que a melhor alocação dos recursos primários da sociedade deve ser feita pela iniciativa privada e que o principal papel dos governos é garantir a propriedade e a igualdade das condições competitivas entre os indivíduos. O critério fundamental deve ser a meritocracia, desde que assegurada a condição competitiva entre as alternativas de desenho e ações políticas. É claro que os processos de escolha sociais são mais caros e mais demorados em geral em situações não autocráticas, mas a livre discussão, entre as visões alternativas, é vista como mais que compensadora na produção de soluções aceitáveis pelas sociedades. O constante debate entre as duas visões alternativas – a liberal e a esquerdista – tende a gerar soluções superiores quando feitas em regimes verdadeiramente democráticos.

Com as dificuldades de controle pela população dos atos e ações de políticos eleitos, está havendo, em muitas partes do mundo, um enorme distanciamento entre os políticos e as populações que os elegeram. Onde existe o voto distrital e é assegurado a igualdade entre um eleitor e um voto (em outras palavras, os distritos eleitorais têm o mesmo número de eleitores em todo o pais, ao contrário do que ocorre no Brasil) a experiência tem mostrado uma maior legitimidade dos processos eleitorais e os eleitores podem exercer controles mais efetivos sobre as ações de seus eleitos. No nosso país, estamos longe de termos processos que aproximem os eleitores dos eleitos. De fato, os políticos fazem todo o possível para não precisar prestar conta de seus atos e ações aos eleitores. Os famosos fundos eleitorais distribuídos aos partidos garantem aos políticos as chances de serem eleitos recorrendo somente a instrumentos de mídias e a “marketeiros”, sem terem que prestar contas aos eleitores.

Como a experiência mostrou ao mundo que a alocação de recursos primários produz resultados muito superiores quando feita pela iniciativa privada do que por escritórios públicos burocratizados, a forma capitalista – ou de mercado – de produção de bens e serviços tornou-se, praticamente, hegemônica[1] em todos os continentes. Desta forma, as esquerdas estão se apegando mais ao controle político dos respectivos regimes admitindo, de fato, que a forma capitalista de produção de bens e serviços é superior na produção de riquezas. Novamente, nossa experiência é pobre, também, em permitir que a alocação dos recursos produtivos da sociedade seja feita segundo o ideal liberal da competição baseada na meritocracia econômica. Nossa história recente de escolha dos chamados “campeões nacionais” pelo governo, gerou inúmeras perdas sociais de qualidade de vida – causadas pela corrupção e ineficiências produtivas – para a sofrida população brasileira.

Por fim, o debate parlamentar e acadêmico entre as visões liberais e de esquerda tendem a produzir soluções positivas para a sociedade, desde que feito em ambientes de legítima representatividade democrática sob o controle, o mais direto possível, dos eleitores. Este debate entre visões alternativas é fundamental para a superação da profunda chaga que a desigualdade entre classes impõe ao corpo social brasileiro. Como indicado por Roberto da Matta em artigo recentemente publicado:  

Não é mais possível manter um inferno jurídico para os pobres e os comuns e um purgatório de regalias para os que estavam (e continuam estando) acima da lei. A luta hoje é como controlar o purgatório jurídico fiador da desigualdade[2].

O parlamento brasileiro precisa se depurar em sua representatividade para produzir um arcabouço legal que melhore as condições de vida de toda a população e não permita a manutenção de perversos privilégios que subgrupos que têm se apoderado dos governos insistem em continuar viabilizando.

 

[1] As notáveis exceções são Cuba, Coreia do Norte e Venezuela, países que estão, literalmente, em situações de penúria econômica, com as consequentes baixas qualidade de vida de suas populações.

[2] Roberto DaMatta, “Acabar com a Esquerda”? O Estado de São Paulo, 09 de setembro de 2020

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