TRISTE PERSPECTIVA DE UMA NAÇÃO
Fernando Curi Peres
Vania Di Addario Guimarães
José Roberto Canziani
O Brasil, país “deitado eternamente em berço esplêndido”, vive, atualmente, um período de perspectivas sombrias para o desenvolvimento da Nação! Como já insistentemente mostramos[1], na ausência de uma reforma política que, realmente, pusesse nas mãos da população as decisões políticas importantes para a nação, por meio da instituição do voto distrital e da figura do “recall” eleitoral, só resta a alternativa desta mesma população sair às ruas exigindo mudanças radicais, como aconteceu recentemente no Chile. Deve-se notar que o equilíbrio dinâmico que se criou só pode ser perturbado se alguma força agir sobre ele. É claro que isto não garante que soluções boas serão encontradas, mas parece ser a única forma de alterá-lo. Só com lideranças de verdadeiros estadistas elas serão alcançadas. Isto ficou, ainda, mais difícil com a constatação da existência de um novo fenômeno político inaugurado, no Brasil, desde que o Lulopetismo se tornou um fenômeno eleitoral importante, o qual foi muito impulsionado no período Bolsonaro e que parece piorar a cada ano: a polarização extremada da população! A constatação deste importante fenômeno no Brasil veio fartamente documentado em fatos revelados por pesquisas publicadas no livro “Biografia do Abismo” de autoria de Felipe Nunes – cientista político – e de Thomas Traumann – jornalista. O próprio título do livro já sugere, na visão fundamentada em fatos bem mensurados, como as perspectivas políticas do nosso país estão prejudicadas.
Em qualquer democracia verdadeira, existem diferentes visões e percepções políticas que se expressam por meio de partidos, de associações e de organizações sociais que convivem e se desempenham representativamente, com maior ou menor legitimidade, nos parlamentos e nos órgãos de governo. Nas democracias liberais típicas do mundo ocidental, a representatividade da população por pessoas eleitas para atuarem em seu nome pode gerar, e em geral geram, alternância entre visões diferentes das correntes de representantes. Os parlamentos deveriam, para cumprir seu papel fundamental de elaborar as leis do país, representar o mais legitimamente possível as visões e interesses dos diferentes grupos que compõem suas sociedades. Os parlamentos são, portanto, os locais onde as visões e interesses se opõem, se contrapõem e, eventualmente, atingem soluções comuns com as quais a sociedade consegue conviver pacificamente. As diferentes visões e interesses definem adversários e parceiros. Um problema que pode dificultar muito o funcionamento dos parlamentos é a definição do outro como inimigo, em vez de adversário. A radicalização extremada que está caracterizando o processo político brasileiro está criando inimigos, em vez de adversários.
Quando se define o indivíduo que tem visão diferente da sua como inimigo, em vez de como adversário político, suas ações são dirigidas no sentido de eliminá-lo, ou exterminá-lo, em vez de procurar eventuais pontos de convergência e/ou soluções com as quais os diferentes grupos conseguem conviver. Acabam as soluções resultado de consensos ou consentimentos e parte-se para a decisão pela força. É o retorno da tirania e a morte da solução política, ou parlamentar. Apelam-se aos quartéis quando não se enxergam soluções políticas baseadas nas leis. O que levou o Brasil e diversos outros países a apresentarem a polarização extremada de sua população no nível relatado no livro mencionado acima? Pode-se tentar explicar o ocorrido no país aventando diversas hipóteses: primeiro, com a hipótese de que o fenômeno foi grandemente aumentado com o desenvolvimento das mídias de fácil acesso popular; segundo, que o fenômeno se deve à baixa representatividade do processo eleitoral brasileiro; e, finalmente, ou terceiro, a hipótese que é de certo modo causada pela baixa representatividade mencionada, a de que o fenômeno se deve ao funcionamento precário do nosso sistema de poder, que tem hiper utilizado o Judiciário, fazendo-o, ou permitindo-lhe desempenhar um papel para o qual ele não tem legitimidade ou mandato para desempenhar no balanço dos poderes e no sistema de pesos e contrapesos com o Legislativo e com o Executivo. Cada uma das hipóteses mencionadas precisa ser trabalhada.
A impressionante utilização das mídias sociais por grande parte das populações tem, além da desejável característica de democratizar, ou dar acesso a qualquer pessoa à livre manifestação de suas visões e/ou opiniões, ainda apresenta a propriedade de utilização, pelos responsáveis pelas redes, de algoritmos que tendem a isolar e a radicalizar os grupos de pessoas. Um algoritmo é uma sequência de passos lógicos, ou matemáticos na maioria das vezes, que pode identificar e classificar indivíduos em categorias bem definidas. Isto torna muito fácil para os responsáveis pelas diferentes redes sociais classificar cada indivíduo em determinado grupo de opinião e passar a oferecer-lhe somente, ou principalmente, o que ele gostaria de ver e ouvir. O fenômeno faz os indivíduos que se informam, principalmente, nas redes sociais ou em canais exclusivos das diferentes mídias, a radicalizarem, cada vez mais, seus pontos de vista, suas crenças ou, em geral, suas ideologias. Assim, o outro lado da moeda da expansão e democratização da comunicação permitida pela digitalização das mídias, que é altamente desejável, é o aumento na formação de grupos isolados que, de fato, tendem a perder a capacidade de ouvir ou ver opiniões, visões ou ideologias alternativas. Transformam-se em radicais não democratas!
A baixa representatividade do processo eleitoral do parlamento brasileiro é, provavelmente, a principal razão da degeneração e/ou descrença na nossa democracia. Os políticos brasileiros conseguiram desenhar ao longo do tempo um processo eleitoral que dá aos eleitos o controle, ou posse, total do seu mandato. Eles não precisam representar um grupo qualquer de eleitores. Podem representar tão e somente os seus próprios interesses! Em sistemas eleitorais desenhados para manter a legitimidade da representação popular, o eleitor sabe em quem votou e, acima de tudo, sabe quem o seu voto acabou elegendo. Isto não acontece nas nossas Câmaras de Deputados – estaduais ou na federal – e nas Câmaras de Vereadores, pela ausência do voto distrital. Praticamente ninguém sabe para quem o seu voto acabou contribuindo para eleger. O eleitor vota no Tiririca como voto de protesto contra o sistema atual e acaba elegendo um apadrinhado do poderoso Valdemar da Costa Neto, conhecido chefe político condenado por corrupção no Caso do Mensalão. Ele acaba elegendo um político contra o qual seu voto de protesto se dirigia! Tamanha distorção só pode ser corrigida com o voto distrital. O voto distrital permitiria corrigir duas importantes aberrações de nosso sistema eleitoral.
A primeira aberração do nosso sistema eleitoral é responsável pela enorme diferença de representação na Câmara dos Deputados Federais: estados muito populosos, como São Paulo por exemplo, tem cerca de 44,5 milhões de habitantes e elege 70 deputados federais; Roraima, com 652.000 habitantes elege 8 deputados federais. Em São Paulo, 44,5/70 = 635.000 habitantes elegem um deputado federal; em Roraima bastam 652.000/7 = 81.500 habitantes para eleger um. Ou seja, em São Paulo são necessários quase 8 vezes mais eleitores para eleger um deputado federal do que em Roraima. Deve-se notar que a existência de um Sistema Legislativo bicameral, com o Senado contendo o mesmo número de representantes por estado, tem sua justificativa no fato de nos chamarmos uma federação de estados, que deveriam ser relativamente autônomos. Assim, não há justificativa para a enorme distorção na atual representação por estados na Câmara dos Deputados Federais. A outra enorme distorção do sistema eleitoral nas câmaras de deputados e de vereadores municipais é responsável pela dissociação entre eleitores e eleitos. A perversidade do sistema praticamente impede o eleitor de saber quem o seu voto acabou elegendo. Isto é muito conveniente para os eleitos porque eles não precisam prestar contas a seus eleitores. Podem “vender” seus votos em troco de cargos no Executivo, nas inúmeras empresas estatais existentes em todo o país, nos âmbitos dos níveis federal, estaduais e municipais, ou em troca da liberação de emendas para atender locais ou pessoas apadrinhadas.
O voto distrital dá aos eleitores uma relação direta e identificada com o representante eleito por seu distrito. Desta forma, ele pode saber quem seu voto elegeu e decidir se quer, ou não, manter o eleito nas próximas eleições. Um exemplo de como poderia funcionar no Brasil pode ajudar o eleitor a entender todo o alcance do voto distrital: Em 2022 o pais tinha cerca de 156,5 milhões de eleitores aptos a exercer seu direito de voto. Com uma Câmara de Deputados Federais formadas por 513 eleitos, o correspondente coeficiente eleitoral seria 156,5/513 = 305.000. Cada estado teria um número de distritos iguais ao seu número de eleitores divididos por 305.000. Isto corrigiria a primeira distorção do sistema porque a correspondente representação política de cada estado na Câmara de Deputados seria proporcional a sua população (ou número de eleitores). Cada partido poderia apresentar um, e somente um, candidato a Deputado Federal em cada distrito e o candidato, em um ou dois turnos, que tivesse a maioria dos votos seria o representante eleito daquele distrito. Os eleitores saberiam quem seria seu representante e poderiam acompanhar seu desempenho na Cãmara e dar-lhe, ou não, seu voto na próxima eleição. Desta forma, os eleitos teriam que prestar contas a seus eleitores!
A terceira hipótese trata da superutilização do Poder Judiciário quando os três poderes da república – Executivo, Judiciário e Legislativo – deveriam ser independentes e funcionar no sistema de pesos e contrapesos na condução da coisa pública. Como nosso Judiciário não tem a legitimidade derivada da escolha dos membros dos tribunais e do controle do Ministério Público com respaldo de representantes legítimos da população (que só o voto distrital é capaz de garantir), os outros dois poderes, o Executivo e o Legislativo, acabam utilizando-o para seus fins políticos quando os parlamentos não representativos da população não conseguem decidir, ou tentam decidir sem o necessário suporte da população. É o caso do uso recente da decisão do chamado Marco Regulatório da demarcação de terras indígenas. Como o próprio Presidente Lula admitiu, com a atual composição do Congresso Nacional (ele chamou de “com a composição geopolítica atual”) a mudança que ele pretendia no Marco Regulatório nunca seria aprovada. Assim, o STF, que é politicamente dócil ao Poder Executivo, tomou a iniciativa inconstitucional de aprovar a pretendida mudança. Esta interferência inconstitucional do Judiciário tira o respeito que o Poder Judiciário precisa ter por parte da população, reduzindo sua competência de cumprir, corretamente, seu papel de pacificar a Nação!
Provavelmente, elementos das três hipóteses mencionadas estão presentes na explicação correta do fenômeno da excessiva polarização da sociedade brasileira. Isto dificulta a possível solução que surgiria se a população fosse às ruas, como aconteceu em 2013, exigindo mudanças no sentido do aprimoramento da democracia no Brasil. Sem isto, o equilíbrio dinâmico que se estabeleceu entre forças políticas que participam do butim exploratório da população brasileira – certas camadas altas do funcionalismo público, os representantes ilegitimamente eleitos do Legislativo e os empresários que “fazem sua fortuna mamando nas tetas dos governos” – continuarão sem serem molestados e a impor à população brasileira, especialmente à camada dos mais pobres, o ônus de manter esta situação de privilégios. É interessante constatar que, apesar do discurso distributivista das esquerdas brasileiras, elas são o principal suporte político dos mencionados grupos de privilegiados exploradores!
[1] Ver artigos intitulados “O Brasil pouco Republicano” e “Uma falsa Dicotomia” no blog Opinioesdocampo.com