Editoriais

TRISTE PERSPECTIVA DE UMA NAÇÃO

Fernando Curi Peres

Vania Di Addario Guimarães

José Roberto Canziani

O Brasil, país “deitado eternamente em berço esplêndido”, vive, atualmente, um período de perspectivas sombrias para o desenvolvimento da Nação! Como já insistentemente mostramos[1], na ausência de uma reforma política que, realmente, pusesse nas mãos da população as decisões políticas importantes para a nação, por meio da instituição do voto distrital e da figura do “recall” eleitoral, só resta a alternativa desta mesma população sair às ruas exigindo mudanças radicais, como aconteceu recentemente no Chile. Deve-se notar que o equilíbrio dinâmico que se criou só pode ser perturbado se alguma força agir sobre ele. É claro que isto não garante que soluções boas serão encontradas, mas parece ser a única forma de alterá-lo. Só com lideranças de verdadeiros estadistas elas serão alcançadas. Isto ficou, ainda, mais difícil com a constatação da existência de um novo fenômeno político inaugurado, no Brasil, desde que o Lulopetismo se tornou um fenômeno eleitoral importante, o qual foi muito impulsionado no período Bolsonaro e que parece piorar a cada ano: a polarização extremada da população! A constatação deste importante fenômeno no Brasil veio fartamente documentado em fatos revelados por pesquisas publicadas no livro “Biografia do Abismo” de autoria de Felipe Nunes – cientista político – e de Thomas Traumann – jornalista. O próprio título do livro já sugere, na visão fundamentada em fatos bem mensurados, como as perspectivas políticas do nosso país estão prejudicadas.

Em qualquer democracia verdadeira, existem diferentes visões e percepções políticas que se expressam por meio de partidos, de associações e de organizações sociais que convivem e se desempenham representativamente, com maior ou menor legitimidade, nos parlamentos e nos órgãos de governo. Nas democracias liberais típicas do mundo ocidental, a representatividade da população por pessoas eleitas para atuarem em seu nome pode gerar, e em geral geram, alternância entre visões diferentes das correntes de representantes. Os parlamentos deveriam, para cumprir seu papel fundamental de elaborar as leis do país, representar o mais legitimamente possível as visões e interesses dos diferentes grupos que compõem suas sociedades. Os parlamentos são, portanto, os locais onde as visões e interesses se opõem, se contrapõem e, eventualmente, atingem soluções comuns com as quais a sociedade consegue conviver pacificamente. As diferentes visões e interesses definem adversários e parceiros. Um problema que pode dificultar muito o funcionamento dos parlamentos é a definição do outro como inimigo, em vez de adversário. A radicalização extremada que está caracterizando o processo político brasileiro está criando inimigos, em vez de adversários.

Quando se define o indivíduo que tem visão diferente da sua como inimigo, em vez de como adversário político, suas ações são dirigidas no sentido de eliminá-lo, ou exterminá-lo, em vez de procurar eventuais pontos de convergência e/ou soluções com as quais os diferentes grupos conseguem conviver. Acabam as soluções resultado de consensos ou consentimentos e parte-se para a decisão pela força. É o retorno da tirania e a morte da solução política, ou parlamentar. Apelam-se aos quartéis quando não se enxergam soluções políticas baseadas nas leis. O que levou o Brasil e diversos outros países a apresentarem a polarização extremada de sua população no nível relatado no livro mencionado acima? Pode-se tentar explicar o ocorrido no país aventando diversas hipóteses: primeiro, com a hipótese de que o fenômeno foi grandemente aumentado com o desenvolvimento das mídias de fácil acesso popular; segundo, que o fenômeno se deve à baixa representatividade do processo eleitoral brasileiro; e, finalmente, ou terceiro, a hipótese que é de certo modo causada pela baixa representatividade mencionada, a de que o fenômeno se deve ao funcionamento precário do nosso sistema de poder, que tem hiper utilizado o Judiciário, fazendo-o, ou permitindo-lhe desempenhar um papel para o qual ele não tem legitimidade ou mandato para desempenhar no balanço dos poderes e no sistema de pesos e contrapesos com o Legislativo e com o Executivo. Cada uma das hipóteses mencionadas precisa ser trabalhada.

A impressionante utilização das mídias sociais por grande parte das populações tem, além da desejável característica de democratizar, ou dar acesso a qualquer pessoa à livre manifestação de suas visões e/ou opiniões, ainda apresenta a propriedade de utilização, pelos responsáveis pelas redes, de algoritmos que tendem a isolar e a radicalizar os grupos de pessoas. Um algoritmo é uma sequência de passos lógicos, ou matemáticos na maioria das vezes, que pode identificar e classificar indivíduos em categorias bem definidas. Isto torna muito fácil para os responsáveis pelas diferentes redes sociais classificar cada indivíduo em determinado grupo de opinião e passar a oferecer-lhe somente, ou principalmente, o que ele gostaria de ver e ouvir. O fenômeno faz os indivíduos que se informam, principalmente, nas redes sociais ou em canais exclusivos das diferentes mídias, a radicalizarem, cada vez mais, seus pontos de vista, suas crenças ou, em geral, suas ideologias. Assim, o outro lado da moeda da expansão e democratização da comunicação permitida pela digitalização das mídias, que é altamente desejável, é o aumento na formação de grupos isolados que, de fato, tendem a perder a capacidade de ouvir ou ver opiniões, visões ou ideologias alternativas. Transformam-se em radicais não democratas!

A baixa representatividade do processo eleitoral do parlamento brasileiro é, provavelmente, a principal razão da degeneração e/ou descrença na nossa democracia. Os políticos brasileiros conseguiram desenhar ao longo do tempo um processo eleitoral que dá aos eleitos o controle, ou posse, total do seu mandato. Eles não precisam representar um grupo qualquer de eleitores. Podem representar tão e somente os seus próprios interesses! Em sistemas eleitorais desenhados para manter a legitimidade da representação popular, o eleitor sabe em quem votou e, acima de tudo, sabe quem o seu voto acabou elegendo. Isto não acontece nas nossas Câmaras de Deputados – estaduais ou na federal – e nas Câmaras de Vereadores, pela ausência do voto distrital. Praticamente ninguém sabe para quem o seu voto acabou contribuindo para eleger. O eleitor vota no Tiririca como voto de protesto contra o sistema atual e acaba elegendo um apadrinhado do poderoso Valdemar da Costa Neto, conhecido chefe político condenado por corrupção no Caso do Mensalão. Ele acaba elegendo um político contra o qual seu voto de protesto se dirigia! Tamanha distorção só pode ser corrigida com o voto distrital. O voto distrital permitiria corrigir duas importantes aberrações de nosso sistema eleitoral.

A primeira aberração do nosso sistema eleitoral é responsável pela enorme diferença de representação na Câmara dos Deputados Federais: estados muito populosos, como São Paulo por exemplo, tem cerca de 44,5 milhões de habitantes e elege 70 deputados federais; Roraima, com 652.000 habitantes elege 8 deputados federais. Em São Paulo, 44,5/70 = 635.000 habitantes elegem um deputado federal; em Roraima bastam 652.000/7 = 81.500 habitantes para eleger um. Ou seja, em São Paulo são necessários quase 8 vezes mais eleitores para eleger um deputado federal do que em Roraima. Deve-se notar que a existência de um Sistema Legislativo bicameral, com o Senado contendo o mesmo número de representantes por estado, tem sua justificativa no fato de nos chamarmos uma federação de estados, que deveriam ser relativamente autônomos. Assim, não há justificativa para a enorme distorção na atual representação por estados na Câmara dos Deputados Federais. A outra enorme distorção do sistema eleitoral nas câmaras de deputados e de vereadores municipais é responsável pela dissociação entre eleitores e eleitos. A perversidade do sistema praticamente impede o eleitor de saber quem o seu voto acabou elegendo. Isto é muito conveniente para os eleitos porque eles não precisam prestar contas a seus eleitores. Podem “vender” seus votos em troco de cargos no Executivo, nas inúmeras empresas estatais existentes em todo o país, nos âmbitos dos níveis federal, estaduais e municipais, ou em troca da liberação de emendas para atender locais ou pessoas apadrinhadas.

O voto distrital dá aos eleitores uma relação direta e identificada com o representante eleito por seu distrito. Desta forma, ele pode saber quem seu voto elegeu e decidir se quer, ou não, manter o eleito nas próximas eleições. Um exemplo de como poderia funcionar no Brasil pode ajudar o eleitor a entender todo o alcance do voto distrital: Em 2022 o pais tinha cerca de 156,5 milhões de eleitores aptos a exercer seu direito de voto. Com uma Câmara de Deputados Federais formadas por 513 eleitos, o correspondente coeficiente eleitoral seria 156,5/513 = 305.000. Cada estado teria um número de distritos iguais ao seu número de eleitores divididos por 305.000. Isto corrigiria a primeira distorção do sistema porque a correspondente representação política de cada estado na Câmara de Deputados seria proporcional a sua população (ou número de eleitores). Cada partido poderia apresentar um, e somente um, candidato a Deputado Federal em cada distrito e o candidato, em um ou dois turnos, que tivesse a maioria dos votos seria o representante eleito daquele distrito. Os eleitores saberiam quem seria seu representante e poderiam acompanhar seu desempenho na Cãmara e dar-lhe, ou não, seu voto na próxima eleição. Desta forma, os eleitos teriam que prestar contas a seus eleitores!

A terceira hipótese trata da superutilização do Poder Judiciário quando os três poderes da república – Executivo, Judiciário e Legislativo – deveriam ser independentes e funcionar no sistema de pesos e contrapesos na condução da coisa pública. Como nosso Judiciário não tem a legitimidade derivada da escolha dos membros dos tribunais e do controle do Ministério Público com respaldo de representantes legítimos da população (que só o voto distrital é capaz de garantir), os outros dois poderes, o Executivo e o Legislativo, acabam utilizando-o para seus fins políticos quando os parlamentos não representativos da população não conseguem decidir, ou tentam decidir sem o necessário suporte da população. É o caso do uso recente da decisão do chamado Marco Regulatório da demarcação de terras indígenas. Como o próprio Presidente Lula admitiu, com a atual composição do Congresso Nacional (ele chamou de “com a composição geopolítica atual”) a mudança que ele pretendia no Marco Regulatório nunca seria aprovada. Assim, o STF, que é politicamente dócil ao Poder Executivo, tomou a iniciativa inconstitucional de aprovar a pretendida mudança. Esta interferência inconstitucional do Judiciário tira o respeito que o Poder Judiciário precisa ter por parte da população, reduzindo sua competência de cumprir, corretamente, seu papel de pacificar a Nação!

Provavelmente, elementos das três hipóteses mencionadas estão presentes na explicação correta do fenômeno da excessiva polarização da sociedade brasileira. Isto dificulta a possível solução que surgiria se a população fosse às ruas, como aconteceu em 2013, exigindo mudanças no sentido do aprimoramento da democracia no Brasil. Sem isto, o equilíbrio dinâmico que se estabeleceu entre forças políticas que participam do butim exploratório da população brasileira – certas camadas altas do funcionalismo público, os representantes ilegitimamente eleitos do Legislativo e os empresários que “fazem sua fortuna mamando nas tetas dos governos” – continuarão sem serem molestados e a impor à população brasileira, especialmente à camada dos mais pobres, o ônus de manter esta situação de privilégios. É interessante constatar que, apesar do discurso distributivista das esquerdas brasileiras, elas são o principal suporte político dos mencionados grupos de privilegiados exploradores!

[1] Ver artigos intitulados “O Brasil pouco Republicano” e “Uma falsa Dicotomia” no blog Opinioesdocampo.com

Compartilhe:

A ARGENTINIZAÇÃO DA POLÍTICA BRASILEIRA

Fernando Curi Peres

Vania Di Addario Guimarães

José Roberto Canziani

Com o recente processo eleitoral ocorrendo no país vizinho, os instrumentos de mídia brasileira têm noticiado o apoio que tanto nossas correntes de pensamento políticas de esquerda quanto os de extrema direita estão emprestando aos irmãos próximos. Entre os camaradas esquerdistas brasileiros da iniciativa chamada Fórum de São Paulo, conhecidos “marketeiros” ligados ao Lulopetismo estão ajudando os peronistas e grupos afins a se manterem no poder naquele país. Ora, uma das características dos países democráticos é a alternância de poder entre grupos que têm visões políticas tão diversas como os peronistas e aliados de um lado, e grupos mais liberais de outro. A Argentina, por sua vez, merece ser interpretada em sua persistência, ou predominância, marcante de peronistas ocupando o governo central do país desde os últimos anos da primeira metade do Século XX. Como explicar a manutenção por tantas décadas de uma orientação política que, claramente, têm produzido resultados tão ruins?

Enquanto a Argentina foi, na primeira metade do século passado, uma importante exportadora de produtos de sua agricultura altamente competitiva, seus índices de desenvolvimento estavam entre os mais altos do mundo nos itens mais relevantes que medem educação, consumo alimentar, desenvolvimento artístico e outros indicadores de superior qualidade de vida. A pergunta difícil de ser respondida é a que questiona como foi possível que um país que tenha alcançado níveis de bem estar social tão altos entrar em um processo de deterioração permanente da qualidade de vida de sua população? Quando Abrahan Lincoln sugeriu que ‘se pode enganar a alguns por muito tempo, mas era impossível enganar a todos por todo o tempo’ ele, certamente, não conhecia, nem podia imaginar que aconteceria um caso como o da Argentina!

Entre as causas da deterioração econômica e política da sociedade Argentina está, com certeza, a alta instabilidade institucional do país. É sempre possível argumentar que a instabilidade institucional é resultado e não causa do declínio da Nação, quando avaliado pelos índices atualmente usados como indicadores de mais altos IDHs das sociedades. As altas inflações suportadas e permitidas pelos seus processos políticos, as inúmeras quebras de contratos implementadas por seus governos centrais e o populismo prevalescente nos seus processos políticos sugerem que a desvalorização, ou o desprezo pela estabilidade institucional tem sido uma característica persistente no país. Neste sentido, a sociedade argentina pode ser indicada como a principal vítima de um modelo errado de desenvolvimento econômico que ignora as vantagens comparativas de um país e decide que ele precisa da industrialização forçada para conseguir fugir da condição de ‘economia satélite e dependente’[1] de economias centrais para obter produtos industrializados.

Ao contrário dos países da Oceania – Nova Zelândia e Austrália – por exemplo, que se desenvolveram abrindo suas economias e privilegiando as forças de mercado que atuam com base nas respectivas vantagens comparativas[2], a orientação dos processos econômicos dos países que sofreram forte influência da perspectiva Cepalina de promoção da industrialização a qualquer custo cobrou um alto preço das respectivas sociedades. Às custas da penalização pesada de suas cadeias eficientes, que no Brasil correspondiam a alguns setores do agronegócio e do mineral, desenvolveram um imenso setor industrial que, em sua maioria, transformou-se em subsetores, ou cadeias, ineficientes e dependentes de subsídios permanentes para se manterem ativos. Na Argentina o processo peronista de penalização do seu agro foi e continua sendo extremamente perverso na destruição de seus setores mais competitivos para financiar uma industrialização ineficiente e forçar a transferência de rendas da agricultura para os setores urbanos da economia.

A discussão sobre o modelo de desenvolvimento argentino – assim como o brasileiro[3] – teve uma enorme influência dos economistas Raul Prebisch, argentino e principal teórico desde a criação da CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe –, e do ex-ministro romeno Mihail Manoïlesco, na adoção de políticas centralizadoras de promoção da sua urbanização e da indústria de transformação com financiamento e tripulação retirados na marra, ou por expropriação, dos setores exportadores eficientes do agro. As forças políticas brasileiras tiveram, em décadas recentes e por razões que não cabem aqui serem discutidas, o bom senso de dirigirem ao seu agro algumas medidas voltadas ao desenvolvimento de cadeias de alimentos, fibras e energia, por meio do estímulo à pesquisa e ao ensino, além de políticas de crédito e preços mínimos. A Argentina continuou com a orientação peronista de transferência de rendas do agro para os setores urbanos. Conseguiram a proeza, quase única entre as sociedades que são conhecidas, de transformar em relativamente pobre uma economia que foi das mais ricas do mundo!

Normalmente, governos populistas gastam mais do que arrecadam para conceder benesses a certos setores da sociedade. Com isso, esses benefícios se transformam em aprovações políticas por parte da população menos esclarecida, ou por aqueles que as recebem. Mais adiante, no entanto, essas políticas geram aumento da dívida pública e/ou da inflação e a desvalorização da moeda nacional, causando o empobrecimento mais geral da população. Paradoxalmente, não é fácil derrubar esses governos, pois mesmo os mais pobres têm receio de perder as benesses concedidas pelo governo populista. Em muitos casos, como o brasileiro, uma parte importante dos recursos arrecadados pelo governo vêm de impostos indiretos[4], que a população menos esclarecida não percebe que ela mesmo está pagando. È impressionante como as pesquisas mostram que as camadas mais pobres de nossa população não sabem que elas pagam uma maior fração de suas rendas como impostos indiretos, ao contrário do que acontece com os membros das classes mais ricas da sociedade.

As esquerdas da América Latina têm sido muito eficientes em conseguir suporte para populistas que prometem a seus povos qualidades de vida que não estão ao seu alcance. A baixíssima sofisticação política de suas populações, para a qual colabora a péssima qualidade de seus sistemas de ensino, está permitindo a manutenção nos respectivos poderes políticos de populistas hábeis em enganar este tipo de eleitor. Isto acontece particularmente no Brasil, onde se atingiu um nível de vulgarização de práticas de corrupção que dificilmente seriam aceitas em sociedades onde os estoques de capitais humanos e sociais são superiores. Para elevar estes estoques, uma condição fundamental no processo requer uma transformação profunda em seus sistemas educacionais e políticos que, praticamente, estão ausentes nos nossos respectivos debates políticos. Só com profundas reformas política e educacional teremos a chance de fugir da correspondente armadilha populista na qual estamos presos!

[1] Como foram classificadas, na época, as economias.

[2] As políticas nos dois países da Oceania – Austrália e Nova Zelândia – foram, ao contrário das intervencionistas da América Latina, voltadas, principalmente para a educação de sua população e para estímulos concorrenciais que privilegiaram o desenvolvimento de setores nos quais suas economias têm claras vantagens comparativas. Hoje suas sociedades apresentam IDHs entre os mais altos do mundo, mostrando a superioridade da perspectiva liberal sobre a Cepalina de promoção da industrialização a qualquer custo.

[3] No Brasil ficou bastante conhecida a controversa iniciada nos anos 1943-44 entre o industrial Roberto Simonsen e o economista Eugênio Gudin que defendiam posições opostas quanto à industrialização induzida por políticas centralizadoras. Publicada em seu seminal “A Lanterna de Popa” o economista Roberto Campos assim descreve alguns elementos daquela importante controversa:

 (Eugênio) Gudin insistia em que o processo industrializante deveria observar as linhas de vantagens comparativas e deveria caber principalmente ao setor privado, sem se relegar a agricultura à posição de vaca leiteira para financiar a industrialização

[4] Impostos indiretos são aqueles que não dependem da renda auferida pelo indivíduo, ou pela  família.

Compartilhe:

UMA FALSA DICOTOMIA

Fernando Curi Peres

Vania Di Addario Guimarães

José Roberto Canziani

      È necessário chamar a atenção dos leitores, pelo menos daquelas pessoas cujas fontes de informações vão além do WhatsApp e do Twiter, para a falsa dicotomia implícita na polarização política que nos chama, os não lulopetistas, de bolsonaristas. Nunca votamos no Lula, e/ou nos candidatos do PT, porque somos, e cremos, no liberalismo como definido pelos membros da chamada Escola de Viena, sintetizada e apresentada ao mundo na segunda metade do Século XIX e início do Século XX. Bolsonaro se apresentou à população brasileira como candidato à presidência da república em 2018 pousando de liberal. Acreditamos, e votamos nele, quando disse que não entendia de economia e delegaria ao seu Posto Ipiranga (Paulo Guedes) a gestão da economia nacional. Apesar de seu Ministro da Economia, Dr. Paulo Guedes, ser egresso de uma escola onde notoriamente predomina o pensamento liberal – Universidade de Chicago, USA – sua atuação como Ministro da Economia mostrou-se totalmente distanciada das prescrições que deveriam caracterizar a de um verdadeiro liberal. Não estamos dizendo que ele precisava seguir estritamente todas as prescrições liberais, principalmente sendo ministro de um presidente que, posteriormente, mostrou ser claramente corporativista, patrimonialista e averso à maioria das políticas liberais; por outro lado, um verdadeiro liberal não se apega ao poder, não faz tantas conceções e não permite tantas tentativas governamentais de implantar políticas contrárias ao liberalismo, como ele fez. Como bem fez o Secretário de Desestatização Salim Mattar, Paulo Guedes estaria sendo fiel aos princípios que diz acreditar se tivesse “entregado o chapéu e pedido demissão do governo”.

      O ex-secretário Salim Mattar, a nosso ver, um verdadeiro liberal, deixou prematuramente seu cargo no governo, ao constatar que, de fato, não existia uma real intenção de fazer cumprir o anunciado programa de privatizações apresentado pelo candidato Bolsonaro. Embora alegado por bolsonaristas que a resistência maior veio do Congresso Nacional, qualquer analista, mesmo os menos informados, deveria saber que haveriam dificuldades numa tentativa de privatização de, pelo menos, parte importante do enorme conjunto de estatais do governo central, uma vez que temos uma representação política eivada de vícios de legitimidade oriundos do nosso processo eleitoral. Nossas eleições para deputados e vereadores são altamente viesadas no sentido de tirar do eleitor o poder de controlar os eleitos. As instituições do voto distrital e do “recall eleitoral” melhorariam muito a legitimidade e funcionamento do nosso sistema, como acontece em muitas democracias amadurecidas, exatamente as correspondentes à maioria dos países desenvolvidos do mundo.

        Uma das principais razões para se entender as resistências dos membros do Congresso Nacional ao processo de privatizações está, exatamente, na análise do equilíbrio dinâmico dos estímulos que movem os diferentes atores do processo político e eleitoral do Brasil. Como em qualquer outro país do mundo, o realismo exigido de análises dos processos políticos precisa basear-se na pressuposição fundamental de que os diferentes atores agem de acordo com seus próprios interesses. Isto é perfeitamente compatível com a existência de verdadeiros espíritos de estadistas, característicos de pessoas que são capazes de entender que eles próprios, suas famílias e seus entes queridos e descendentes têm e terão melhores qualidades de vida se habitarem regiões com sociedades mais desenvolvidas. O conceito de desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen1 é o que consideramos na nossa mensuração de desenvolvimento. Ora, o perverso equilíbrio político atingido pela Nação Brasileira é um exemplo claro de como nosso sistema institucional está permitindo uma acomodação de interesses privados de forma prejudicial à maioria da população do país. Como em todo equilíbrio dinâmico, ele só será alterado se alguma força externa for aplicada a ele!

       Nossa pulverização partidária, ferrenhamente defendida até pela mais alta corte do nosso Poder Judiciário2 , além da maioria de caciques dos partidos, somado ao processo de contagem de votos para a eleição das câmaras de deputados e de vereadores, dificulta a eleição de claras maiorias nos colegiados eleitos. A perversidade maior está na desvinculação entre os eleitores e os eleitos! Dificilmente o eleitor médio se lembra em quem votou para deputados ou para vereador; pior ainda, quase ninguém sequer sabe quem o seu voto acabou elegendo! Deve-se notar que somente cerca de 5% de nossos deputados federais são eleitos com seus próprios votos. Isto desobriga totalmente o eleito de prestar conta de seus atos aos eleitores. O eleito torna-se dono de seumandato, embora o próprio nome do cargo indique que ele é um representante de eleitores. Desta forma, está montado o quadro institucional que explica perfeitamente como o equilíbrio atual, no qual os deputados e vereadores cuidam majoritariamente de seus interesses privados, os quais são grandemente “estimulados” por cargos e benefícios em empresas estatais para seus prepostos e em manejos corruptos dos orçamentos governamentais. Por isso são contra as privatizações!

       O Poder Judiciário também é parte deste equilíbrio dinâmico que explica a estabilidade do uso da coisa pública por uma elite de privilegiados; ele não interfere neste equilíbrio perverso, desde que possa continuar estabelecendo suas próprias condições, altamente favoráveis, de trabalho. É dos sistemas judiciários mais caros do mundo, com salários e vantagens de remunerações que beiram ao acinte, dado o nível de renda da maioria da nossa população, com férias excepcionalmente longas, que podem ser parcialmente vendidas por valores monetários altos e que, em cima de todos estes privilégios, apresenta à população resultados pífios, em termos do que se espera de seus serviços. Na justiça dos países anglicanos (Common Law), é dito que “Justice delayed is justice denied!” (justiça tardia é justiça negada), Por sua morosidade no Brasil nossa Justiça efetivamente é negada à grande parte da população. Pior ainda, ela é percebida como viesada, tendendo para o benefício dos poderosos e o prejuízo dos pobres. De fato, nosso sistema judiciário está em processo de perder o pouco que lhe resta da efetividade de seu poder de pacificação social, dado sua incapacidade de sinalizar à população o que seriam comportamentos sociais aceitáveis. A tolerância abertamente demonstrada com a corrupção por parte dos membros do governo desmoraliza o Judiciário. Assim, o judiciário não interfere no funcionamento perverso dos outros dois poderes desde que eles não mexam com as vantagens dos membros do judiciário. No equilíbrio mencionado, os eleitos não tocam nos privilégios dos membros do judiciário por medo de possíveis retaliações.

   Como descrito, o equilíbrio que se estabeleceu no sistema de governo brasileiro tende a manter o enorme número de empresas sob o controle do Poder Executivo, como forma de ser utilizado na extensão de benefícios aos membros do Poder Legislativo. Estes benefícios funcionam como contrapartida às necessidades do executivo de recursos monetários para sustentar políticas públicas populistas as quais lhes garantem a manutenção do poder. Como parte do butim é reservado aos membros do Poder Judiciário, este não incomoda o equilíbrio estabelecido. Ora, foi frustrante observar que a promessa liberal do governo Bolsonaro de quebrar este perverso equilíbrio dinâmico nunca foi efetivamente tentada! Por isso os liberais não são bolsonaristas! Bolsonaro recebeu muitos votos de liberais, porque a alternativa era pior, no processo polarizado em que se desenvolveram as eleições presidenciais de 2022. Muitos outros, no entanto, votaram em Lula porque acreditaram nas ameaças de interrupção do processo democrático feitas pelo então Presidente Bolsonaro. Agora os liberais precisam escolher candidatos que, efetiva e realmente, defendam as bandeiras sociais, econômicas e políticas do verdadeiro liberalismo. Ao contrário do que as esquerdas propagam, esta ideologia defende políticas que nos últimos (100) cem anos mostrou ao mundo que, quando consistentemente adotadas, levam a maiores graus de justiça social, equidade e bem estar populacional.

       Quando procuramos classificar países em termos da qualidade de vida de que desfruta sua população atual, é preciso reconhecer que aqueles melhores colocados são, exatamente, os que adotaram políticas liberais consistentemente. Estamos falando na qualidade de vida associada não somente a maiores possibilidades de consumo de bens e serviços de qualidade, mas também de liberdades e da segurança de que os direitos de seus cidadãos serão preservados sem a presença de estados opressores que ditam comportamentos arbitrariamente escolhidos por membros de castas dominantes, sejam elas formadas por ditadores ou por partidos que não se sujeitam ao controle efetivo da sua população.

1 SEN, Amartya (1999) Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda.

2 Em 2006 “O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos) que instituem a chamada ‘cláusula de barreira’”. Em https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=68591&ori= Acesso em 20/08/2023.

Compartilhe:

CONHECIMENTO HUMANO: Ciência e Ideologias

Elaine Mendonça Barros, 

Jose Roberto Canziani 

Vania Di Addario Guimarães

Fernando Curi Peres

      Artigo para discussão  submetido para publicação e apresentação no Terceiro IMAST da Faculdade de Ciências Agrárias e Tecnológicas (FCAT) da UNESP para quem estão sendo transferidos todos os direitos de publicação

I.             Introdução: como podemos estudar o conhecimento humano e algumas de suas implicações.

Muitos profissionais e mesmo estudiosos de determinadas disciplinas ditas científicas e as de outras áreas do conhecimento – artes, religiões, éticas e de escolhas morais, ideológicas ou de opções políticas, de história e de outras formas – usam, em publicações, argumentações, discussões e em manifestações diversas, de forma mais ou menos indiscriminadas, elementos de mais de uma delas, sem precisar suas limitações metodológicas ou pressuposições básicas. Por má fé, ignorância ou falta displicente da devida atenção, o uso indevido dos métodos de análise ou limitações associadas aos conhecimentos derivados das diferentes formas analíticas apontadas acima, os indivíduos são levados a sofismar. O sofista se utiliza de resultados derivados das diferentes áreas do conhecimento sem distingui-los no sentido de suas limitações nas diversas formas de argumentação ou proposição. Quando são utilizados ou propostos com má fé, o acatamento da(s) proposição(ões) resultante(s) de sofismas pode levar a perdas sociais no sentido de infligir em outro(s) solução(ões) inconveniente(s). O presente artigo é uma introdução ao estudo das formas, ou tipos, de conhecimento humano, com a clara intensão de ajudar o leitor a fugir do uso de sofismas em suas argumentações e levá-lo a refletir sobre o papel do conhecimento científico no contexto atual.

Estudar as diferentes formas do conhecimento humano é o campo da Epistemologia. Esta pode ter a conotação de conhecimento, no sentido que associamos a conhecer uma pessoa mais intimamente ou a conhecer, saber e ter certa familiaridade com um processo, ou método qualquer, além de também incluir o conhecimento de linguagens de algum dos diferentes ramos das ciências e/ou saber utilizar o processo lógico utilizado nas respectivas demonstrações ou análises. Algumas angústias são identificadas no comportamento humano sobre as quais, infelizmente, não conhecemos a origem, ou razão de ser. Luc Ferry, um brilhante filósofo contemporâneo e ex-Ministro da Educação da França, sugere em seu interessante livro introdutório, ou motivacional, para o, ou do, estudo da Filosofia[1], que a angústia do tipo primária, impulsiva ou genética das pessoas, no sentido de elas não se conformarem com o caráter passageiro, temporário ou não eterno de nossos sentimentos de felicidade – opinião comungada pela maioria dos humanos, mostrado no provérbio Inglês segundo o qual “all that is good must come to an end” (tudo que é bom acaba!), e no verso da brasileiríssima canção “Tristeza não tem fim, felicidade sim; a felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor, brilha tranquila depois de leve oscila e cai como uma lágrima de amor , causa uma profunda necessidade dos indivíduos encontrarem soluções mais ou menos lógicas, promessas ou evidências de que algum tipo de felicidade eterna seja possível, pelo menos para alguns.

Um importante filósofo do século passado, Bertrand Russel, matemático, epistemologista e físico do mais alto nível, nascido nos anos setenta do Século XIX, e altamente produtivo desde o final daquele século até meados da segunda metade do Século XX, considera como um dos problemas mais fundamentais da filosofia[2] as dificuldades envolvidas com a demonstração da existência objetiva das coisas, dos fatos, situações ou eventos observados ou percebidos por nossos sentidos. Esta controvérsia, como sugerida por Russel, tem raízes profundas no problema do conhecimento humano.

Desde o famoso “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo; ou Penso, logo sou), uma frase de autoria do filósofo e matemático francês René Descartes, tido como um dos principais pensadores que lançaram as bases do que é hoje aceito como o método universal das ciências, vê-se que o problema da existência objetiva do que é percebido por nossos sentidos ainda não foi resolvido. De fato, estudando as imensas possibilidades de interferências na nossa percepção dos fatos do mundo físico ou virtual, a única certeza que temos, ou podemos ter, sobre a realidade objetiva deles é de que algo está estimulando nosso pensamento![3] Reconhecendo a limitação derivada do não endereçamento deste tópico neste trabalho, trataremos, a seguir, de uma proposta de classificação dos diversos tipos de conhecimento humano, tentando mostrar sua importância e algumas características de cada tipo.

São inúmeras as tentativas anteriores de discutir o conhecimento humano. Bertrand Russel, por exemplo, publicou um importante livro intitulado “Human Knowledge: it’s scope and limits” (O Conhecimento Humano: suas possibilidades e limites)[4] em que discute, profundamente, inúmeros conceitos e exigências de precisão em linguagem no entendimento dos avanços, até aquela data, dos conhecimentos das ciências, especialmente as da natureza, ou do mundo físico. Sir Karl Popper, um dos mais brilhantes analistas da epistemologia e membro destacado da importante corrente de pensamento identificada como a Escola de Viena, publicou inúmeros trabalhos[5], muito rigorosos, sobre o conhecimento humano. Nossa pretensão é muito menor, porque queremos somente introduzir os leitores não versados em Epistemologia em uma primeira incursão no vastíssimo mundo de sua abrangência.

            Um brilhante ganhador do Prêmio Nobel, Gunnar Myrdal, sueco e com formação jurídica inicial, mas que se transformou num gigante do pensamento sociológico e científico, em geral, ao analisar o problema do negro nos Estados Unidos, diz que o máximo que se consegue atingir em termos de objetividade em ciências sociais está associado à explicitação anterior dos “valores e pressuposições” feitos ou defendidos pelo pesquisador. Concordando com ele, precisamos esclarecer que os autores acreditam na superioridade da visão liberal sobre as organizações político-social e econômica das nações. Fica o aviso para aqueles que querem saber detalhes sobre as coisas que os autores acreditam, e os valores morais/éticos que têm procurado seguir e transmitir a seus familiares e entes queridos e, por consequência, a seus alunos.    

II.            As Formas ou tipos de Conhecimento Humano.

II.1 Os Reflexos Condicionados

Existem muitas formas de conhecimento humano, as quais podem ser classificáveis em categorias mais ou menos intuitivas. A mais elementar, nos parece, é o tipo de conhecimento derivado da capacidade humana (comum a muitas outras espécies do reino animal) de identificar regularidades em eventos repetitivos e, consequentemente, desenvolver alguma forma de expectativa – medo, euforia, esperança e outros sentimentos – ou reação, resultante de um processo de aprendizagem em geral, que é conhecido como o condicionamento de reflexos. O fenômeno foi muito bem estudado por Ivan Pavlov e é conhecido como Reflexos Condicionados de Pavlov. Esta é – ou deve ser – a forma mais primária da construção do conhecimento pelas pessoas. Uma grande quantidade de animais superiores – aqui incluídos quase todos os mamíferos – têm a capacidade de desenvolver este tipo de conhecimento. Se alguém coloca um veneno, que mata o animal que dele se alimenta, verá morrer um, ou alguns, dos animais visados; no entanto, muitas espécies daqueles animais aprendem a associar o consumo do veneno, por mais atraente que ele seja, à morte, como consequência. O que se vê é a perda da eficácia do veneno, porque os animais que se quer extinguir logo aprendem que não devem consumí-lo. Na espécie humana, esta forma de conhecimento deve existir, pelo menos, desde os tempos das aparições dos primeiros hominídeos.

II.2 A Primeira Grande Revolução Humana: A Revolução da Conciência.

Uma importante distinção ou característica da espécie humana, no entanto, é sua capacidade de criar mitos ou símbolos e, a partir deles, criar instituições agregadoras, o que lhe permite formar grupos muito maiores do que os pequenos grupos capazes de formar bandos de todas as outras espécies que têm cooperação entre seus membros. O Homo Sapiens (a espécie humana cuja descendência predominou, quase exclusivamente, entre os hominídeos, desde algumas poucas dezenas de milhares de anos) eliminou as outras espécies de hominídeos (do gênero Homo) muito provavelmente pelo que se chamou a grande “revolução da conciência”. Esta revolução concedeu ao Homo Sapiens uma enorme vantagem competitiva na luta pela sobrevivência das espécies. Um exemplo do reino animal ajuda no entendimento deste fenômeno.

Há enorme vantagem da espécie dos leões sobre outros grandes gatos (felinos) porque os leões conseguem ter muita cooperaração entre os elementos de um bando. A cooperação lhes permite muito maior eficiência em suas caçadas para conseguir alimentos para o bando. Ao contrário do guepardo ou do leopardo, que são grandes gatos solitários, praticamente só se juntando em pares na época do acasalamento, os leões dominam seus territórios e tendem a eliminar deles os demais carnívoros, facilitando sua vida de caçadores. Uma regra geral, no entanto, é que os animais cooperadores tendem a apresentar comportamento altamente territorialista, eliminando dele os  membros de outros bandos, até mesmo aqueles da sua própria espécie. Além disso, uma característica marcante dos bandos que cooperam parece ser o desenvolvimento, entre seus membros, de um forte sentido de hierarquia. Em geral, estas sociedades apresentam comportamentos de submissão e privilegiatura muito desenvolvidas.    

Paleontologistas e outros estudiosos da pre-história humana sugerem que os primeiros agrupamentos de humanídeos, que incluiam o Homo Sapiens, entre outras espécies, só podiam ter um tamanho muito limitado de indivíduos vivendo em grupos hierarquisados e cooperantes porque eles precisavam se conhecer, mais ou menos intimamente, por suas características específicas de aparência visual, cheiro e idiossincrasias comportamentais que os identificavam como pertencentes ao grupo ou clã. E, como acontece com as inúmeras outras espécies animais, os primatas primitivos, independente da espécie a que pertencessem, eram altamente territorialistas. Mesmo indivíduos da mesma espécie eram (de fato, são, em muitos mamíferos) rechaçados, mortos ou imediatamente expulsos do convívio com o bando quando identificados como não pertencentes a aquele grupo específico. Por exigência deste conhecimento íntimo entre os membros do clã, eles nunca devem ter sido formados por um número muito maior do que uma centena de indivíduos no mesmo bando[6]. Esta limitação só foi superada quando aconteceu a chamada primeira revolução humana ou a grande revolução da conciência humana. Por algum fenômento evolutivo ainda não conhecido, a espécie Homo Sapiens desenvolveu a capacidade de criar “mitos” ou “símbolos”, que incluiam o reconhecimento na natureza de elementos associados a manifestações de seres superiores ou entidades supervisoras que ditavam normas para os membros do bando, especialmente permitindo a criação de instituições cujos objetivos e indicações comportamentais deveriam ser comungados e obedecidos por todos. Por exemplo, muitas tribos que habitavam determinadas regiões ou vales específicos se juntavam, periodicamente, para aumentar sua eficiência, ou eficácia, nas caçadas, porque eram exigidos muitos indivíduos na empreitada. As caçadas a bandos de mamutes, ou de outros animais de grande porte, são muitas vezes citadas quando se procura a cooperação de muitos guerreiros para produzir os necessários efeitos. Outras vezes, os mitos ou símbolos eram simples criações de indivíduos pertencentes ao bando, os quais serviam para desenvolver nos seus membros um sentido de pertinência ou identificação de compartilhamento de crença. Noutras, eram adorações de elementos da natureza, como o Sol, a Lua ou os raios, como manifestações sobrenaturais que deveriam ser reverenciadas pelos membros do grupo.

O compartilhamento de crença em determinados mitos ou símbolos – ligados às diversas religiosidades, instituições de controle social, identidade geográfica e muito do que hoje chamamos ideologias, etc – permitiu aos bandos de Homo Sapiens crescerem indefinidamente, com a maioria dos membros do grupo que reconhecia o mito ou símbolo comungando a crença comum que lhes dava a característica de pertinência, ou de pertencer ao grande bando. Assim, ainda a título de exemplo, pertencer às comunidades massons, mussulmana, judaica, cristã de determinada seita, bem como ser cidadão de determinados países e etc, dá a algumas pessoas um sentido de pertinência a grupos muito maiores do que sua convivência íntima poderia permitir. Estes símbolos ou mitos desempenham importantes papéis na resultante coalisão social cooperativa; de fato, a história está cheia de casos em que as pessoas doam a própria vida, ou a de seus filhos ou entes queridos, para ajudar na integridade ameaçada de alguns desses grandes grupos. Os santos da Igreja Católica, as mães nazistas encaminhando seus filhos para a guerra já perdida, pilotos japoneses fazendo ataques suicidas na defesa de seu país e as famílias muçulmanas fundamentalistas que cedem seus filhos para detonar bombas amarradas ao próprio corpo são exemplos, não únicos, da aderência das pessoas àqueles mitos ou símbolos. A cooperação resultante pode ser decisiva na subsistência das respectivas instituições.

II.3 As Verdades Reveladas    

Desde cedo, ou pelo menos após a grande revolução da conciência humana no desenvolvimento das sociedades, acredita-se que o conceito de espíritos ou de entidades supervisoras, ou mesmo criadoras, estavam acima dos desígnios humanos e que elas teriam, muitas vezes, ascenção, ou poderes, sobre os agrupamentos ou sobre todos os homens. As evidências antropológicas e os estudos de sociedades primitivas permitem assegurar que, nos mais diversos grupos sociais, sempre havia algum, ou alguns, indivíduo(s) do grupo que detinha(m) privilégios de comunicação com aquelas entidades superiores ou, pelo menos, eram percebidos como capazes de melhor interpretar os desejos ou ditames das diversas deidades, espíritos diversos, inclusive dos antepassados, que precisavam ser atendidos pelos membros do grupo social. Eles desempenhavam o papel de ligação, ou religação, com aqueles entes; daí o conceito inicial de religião, ou religação.[7] O conhecimento comunicado pelos indivíduos privilegiados a todos os membros do grupo social é genericamente conhecido como conhecimento, ou verdade, revelado. As tábuas dos mandamentos são um exemplo de uma revelação feita pelo Deus dos cristãos a Moises.

II.4 As Habilidades de Ofícios

Simultaneamente, ou mesmo nos períodos anteriores, ao longo da saga do desenvolvimento da espécie humana, à medida que as duas formas anteriores – (i) condicionamento de reflexos e (ii) verdades reveladas -, continuavam seu curso, de forma diferenciada em cada grupo social, os indivíduos aprendiam, também, em ritmos e formas diferentes, a manusear ferramentas e processos que consideravam úteis a seus objetivos de sobrevivência e melhoria das qualidades de suas vidas. Estes conhecimentos úteis evoluíram sistematicamente nos agrupamentos gerando categorias conhecidas como as diversas “habilidades de ofícios”, ou profissões . Em períodos mais recentes da história, a proximidade dos indivívuos que se dedicavam a um mesmo ofício levou-os a criar organizações destinadas a garantir a qualidade dos serviços prestados e, às vezes, o monopólio do respectivo mercado. Isto levou, na Europa, ao surgimento de associações gremiais especiais chamadas guildas. A  transmissão das respectivas habilidades entre indivíduos, em geral dos mais velhos para os mais novos e, geralmente, feito sob a supervisão das “guildas”, está na raiz dos processos educacionais do Ocidente, os quais englobaram ou coexistiram com as transmissões sistematizadas dos conhecimentos das verdades reveladas. Elas tiveram importantes papéis políticos e no desenvolvimento do sistema universitário do continente europeu. Por outro lado, elas ajudaram a provocar reações de importantes pensadores que estabeleceram os princípios fundamentais sobre os quais se assenta o ideal chamado de visão liberal, de enorme influência nas sociedades ocidentais. É bastante conhecida a afirmação de Adams Smith de que ‘quando dois ou mais indivíduos de um mesmo ofício se juntam para discutir seu negócio é o público que, em geral, sai perdendo.’

II.5 O Conhecimento Artístico

O conhecimento artístico é, também, uma forma extremamente importante de conhecimento existente desde os primórdios da humanidade. Pode-se dizer que o artista é alguém que consegue, de alguma forma – pela palavra (poeta e/ou escritor), pela dança, pela pintura, pela capacidade de representação em geral, pelo cinema, pela música, pela habilidade de pintar, fotografar, esculpir, desenhar, pela apresentação de fatos escolhidos (na parte artística do marketing) e muitas outras – sensibilizar o público objeto da sua comunicação. A comunicação artística toca nos nossos sentimentos mais profundos, ou íntimos, fazendo dela um importante elemento de expansão de crenças, mitos ou símbolos. Por nossas respostas às mais diferentes formas de comunicação artística, reagimos aceitando ou rejeitando proposições argumentativas de maneira complementar, ou alternativa, à aceitação de argumentos que consideramos lógicos (ou necessários e, até, suficientes) ou razoáveis. As artes ou expressões artísticas existem desde os mais remotos tempos da humanidade. Estudos paleontológicos mostram que as artes existiram muito antes do surgimento da escrita. Deve-se notar que algumas formas de comunicação artística estão, também, incorporadas às cargas genéticas de outras especies animais: os cantos dos pássaros, a beleza da plumagem dos machos de algumas espéciess animais e os ritos de danças e exibições dos de outras espécies na atração das fêmeas são indicações desta incorporação genética. Os próprios bebês humanos mostram, muitas vezes, uma impressionante capacidade de acompanhar com seus corpos a cadência de ritmos de diversos tipos de sons. A comunicação artística deve ser vista, assim, como uma forma primária de comunicação que deve ter existido desde antes da revolução da consciência.

A Criação de Adão”, impressionante obra artística da Capela Sistina de Roma, retratada na Figura 1, mostra uma importante característica dos conhecimentos ocidentais durante a Renascença, na Europa. Segundo aquela visão, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança; ao mesmo tempo o sentido de religação da religião pode ser visto como fortemente sugerido no quadro de Michelangelo.  Pode-se dizer que Deus está criando Adão mas, ao mesmo tempo, o braço estendido de Adão sugere uma forte ligação, ou religação da criatura com o criador. Na época, as verdades

Figura 1 A Criação de Adão por Michelangelo Buonarroti.

Capela Sistina do Vaticano, Roma, Itália.

 

 

reveladas por meio de livros sagrados – a Bíblia para os cristãos; o Corão para os muçulmanos, o Torá para os judeus – eram as principais fontes do conhecimento na Europa. Coincidentemente com o término desta época, ou idade, alguns pensadores ocidentais, tais como Machiaveli, Francis Bacon, René Descartes e David Hume, entre outros, mostraram uma então perigosa disposição de utilizar o conceito cristão do livre arbítrio – chamado de razão humana – no entendimento das coisas do mundo, sem partir das, ou fundamentar-se nas, verdades reveladas. Esta liberdade foi, magistralmente, utilizada por dois “gigantes” do pensamento ocidental, Galileu Galilei e Isaac Newton, que ajudaram a assentar as bases para o que, atualmente, conhecemos como o método das ciências e contribuíram com o tremendo desenvolvimento do conhecimento humano formulado a partir do chamado Iluminismo.

II.6 Algumas Formas Mais Elaboradas de Conhecimento Humano   

Além dos quatro tipos mencionados – (i) reflexos condicionados, (ii) habilidades de ofícios, (iii) verdades reveladas e (iv) conhecientos artísticos – , indicados no Quadro II – 1, existem os conhecimentos considerados mais avançados e desenvolvidos pela criatividade humana, mais ou menos incorporados no comportamento dos indivíduos ou grupos, e que são analisados como princípios diversos de razoabilidades tais como os éticos ou morais, os do Direito, da Psicoanálise, da Filosofia, da Política e das Teologias, entre outros, os quais carregam a característica fundamental de explicitar escolhas, ou valores culturais, capazes de orientar a criação ou o reconhecimento das normas comportamentais humanas. São formas de conhecimento que se prestam a indicar “como o mundo deve ser e/ou como as pessoas devem agir”. Esta pretenção vai muito além do escopo da ciência a qual só pode pretender “explicar o mundo como ele é”. Como se verá a seguir, o método da ciência só se presta ao conhecimento de como são – sua descrição e suas relações causais – os fenômenos, situações ou estados atuais e eventos do mundo; ele, consequentemente, não serve, ou não pode pretender ser competente para escolher como os fenômenos devem ser. O conjunto destes conhecimentos, exemplificados na última linha do Quadro II.2, como os estudos da Ética e Moral, da Filosofia – especialmente da Metafísica –, do Direito, da Psicoanálise, dos “ismos” da opções políticas – Socialismo, Liberalismo, Anarquismo, etc –, das teologias, dos ocultismos e da Astrrologia, etc, refletem escolhas culturais mais ou menos influenciadas pelos quatro tipos mais primários de conhecimentos mencionados e elaborados pelo complexo sistema nervo-cerebral analítico dos humanos.   

Embora utilizando o nome genérico de “científico” alguns conhecimentos, mais ou menos sistematizados, que foram sendo desenvolvidos desde o Iluminismo, acabaram por convergir para um conceito hoje universalmente aceito de que a ciência se restringe aos conhecimentos gerados pelo, ou enquadráveis no, método conhecido como o “método das ciências”. É um subconjunto muito restrito do conhecimento humano que tem pretensões de ser objetivo, no sentido da descrição de fatos, estados atuais ou eventos, feitos por observadores não diretamente envolvidos neles. Como sugerido acima e, embora muitas questões filosóficas e lógicas não resolvidas sejam inerentes àquela pretenção ‒ como a existência do fato ou evento de forma independente do observador ou à pressuposiçao de que é possível sua descrição sem considerar os valores e normas que afetam o observador – ela continua sendo perseguida pelos cientístas de todo mundo e funciona como um “pano de fundo” para os que pretendem aplicar o “método das ciências”.

Algumas considerações precisam ser feitas quando se intenta classificar as formas de conhecimento utilizadas pelas pessoas. Nossa percepção das coisas ou fenômenos do mundo são, provavelmente, o resultado da interação de – ou das – diferentes formas de conhecimento mencionadas, acrescentadas de elaborações mentais complexas que incorporam elementos não necessariamente ligados à realidade efetivamente percebida. Entre as diferentes formas de comunicação humana, possivelmente o conhecimento artístico é o mais importante no conjunto que forma a experiência, ou acervo do conhecimento experimental, das pessoas. Isto porque, como foi dito, a comunicação artística é a que mais diretamente impressiona nossos sentidos. E, os sentimentos ou percepções intimas, são os que as pessoas aceitam com mais facilidade, uma vez que não impõem barreiras concientes, ou filtros, à sua aceitação. Acredita-se que as pessoas são dóceis às percepções – ou sentimentos – a elas comunicadas com o apelo da beleza, da solidariedade, da grandeza de sentimentos e de “toques na alma” expressos de inúmeras maneiras pela comunicação artística. Há quem sugira que o forte uso da comunicação artística nos ensinamentos religiosos estejam, consciente ou inconscientemente, se utilizando desta propriedade para a disseminação de suas normas e valores.  

É provável que nossas crenças reflitam complexas interações entre muitos dos tipos de conhecimentos descritos no Quadro II.2. Nas sociedades mais primitivas, acredita-se que as quatro primeiras formas de conhecimento – (i) reflexos condicionados, (ii) verdades reveladas, (iii) as habilidades de ofícios e as (iv) comunicações artísticas, – sejam as principais caracterizadoras das resperctivas culturas. Deve-se notar que, devido a estes tipos de conhecimentos, devem estar incluídas aí as tradições e valores éticos e morais daqueles grupos sociais. Nas sociedades mais complexas – onde a diferenciação do trabalho atinge limites alcançados com altas especializações dos seus indivíduos e que correspondem à existência de níveis elevados dos respectivos estoques de conhecimento e de uma sistematização sofisticada de categorias destes conhecimentos, alguns estão mais desenvolvidos ou elaborados e os indivíduos que os detém sempre foram reconhecidos como altamente prestigiosos nos seus grupos sociais, tais como os padres, pastores, rabinos, imãs, advogados, médicos, psicoanalistas, filósofos e artistas, por exemplo. Estes prestígios derivam de conhecimentos que refletem as normas comportamentais ou utilidades de qualidade de vida – deveres, obrigações, habilidades, sensibilidades e direitos – das pessoas que  compõem os grupos sociais. O outro tipo de conhecimento que também tem associado prestígio àqueles que o detém é o chamado “conhecimento científico”. Alguns desses profissionais conseguiram compatilizar seus conhecimentos do tipo habilidades de ofício com os derivados do método científico gerando profissões altamente reconhecidas por toda a sociedade. É o caso, por exemplo, dos profissionais da saúde, dos engenheiros e de alguns filósofos que acompanham o desenvolvimento das ciências, como os Epistemologistas.

II.7. O Método da Ciência

O conhecimento que a literatura vem chamando de “conhecimento científico” pode ser precisamente identificado, ou assim classificado, por satisfazer um conjunto de  critérios específicos. O sub-grupo restrito de conhecimento que pode ser classificado como conhecimento científico – e aqui estamos tratando, fundamentalmente, do enfoque positivista[8] que pressupõe a capacidade humana de descrever fenômenos, ou fatos, de maneira objetiva, ou como observadores não envolvidos ou, ainda, “como observadores de fora”[9] – que satisfaz as, ou pode ser apresentado como resultado das, seguintes fases mostradas no Quadro II.3.1 [uma continuação do Quadro II.3]: (i) uma identificação precisa do fato, situação ou fenômeno, que se explica ou que se quer explicar; (ii) o uso de uma teoria já explicitada, a ampliação, ou mesmo, o desenvolvimento de uma teoria alternativa, de maneira que seja explicado, nas suas relações de causa e efeito, o fato, situação ou fenômeno de forma lógica ou consistente com o comportamento de outros entes, situações ou fenômenos do mundo físico; (iii) a derivação lógica, a partir da teoria, de hipótese(s) que precisa(m) ser observada(s) como critério de possível negação da teoria proposta; (iv) o teste estatístico da hipótese escolhida que resultou da derivação anterior; e (v) o aumento, ou diminuição, da intensidade da crença na teoria que a não-negação, ou a negação, da hipótese deve ocasionar.

Uma teoria, para ser considerada científica, precisa permitir a produção de hipóteses testáveis, para que possa ser verificada ou, mais precisamente, não negada, já que a Estatística só pode estimar as probabilidades de um conjunto de dados ser diferente de outros dados, cujas variações consideramos resultado do acaso, ou puramente aleatórias. Uma outra exigência que ela precisa apresentar é a de completa aderência a encadeamentos lógicos de causas e efeitos. É necessário deixar claro que, embora existam muitos tipos de lógica, a teoria proposta, ou utilizada, precisa seguir, rigorozamente, os requisitos daquela lógica. A lógica aristotélica, derivada do pensamento silogista, inicialmente atribuido à correspondente escola de pensamento grego e consistente com sua formalização a partir da matemática, tem sido o instrumento mais utilizado nas análises da consistência dos correspondentes modelos de representação dos fatos ou fenômentos do mundo físico. Por isso, diz-se que a matemática é a linguagem da ciência. Uma enorme contribuição aos diversos ramos da ciência tem sido dada pelos matemáticos que têm, constantemente, aperfeiçoado este tipo de instrumento do conhecimento, permitindo a melhor compreensão e explicitação de complexos mecanismos da natureza, os quais estão indo muito além do que a intuição humana consegue entender.

Mesmo sem conseguir prever, ou perceber, intuitivamente, certos fenômenos, ou estados da natureza, a matemática permite ao cientísta generalizar fenômenos de maneiras que nossa intuição dificilmente consegue vislumbrar. Desta forma, faz sentido a afirmação de Bertrand Russel, segundo a qual ‘o escopo ou objeto de todos os ramos da ciência é sua transformação na Física’. Quando se observam as mais avançadas publicações das ciências, pode-se evidenciar o acerto da indicação daquele grande pensador, feita nas primeiras décadas do Século XX; de fato e por exemplo, um olhar nos periódicos Managenment Sciense, no Journal of Mathematical Psicology ou na Econométrica nos faz pensar, antes de tudo, que estamos diante de publicações da área de Física. Os procedimentos dos respectivos pesquisadores utilizam passos metodológicos muito semelhantes aos utilizados pelos cientístas da área de Físíca. Neste sentido, uma área das ciências sociais tem se destacado em seu intento de utilizar a formalização matemática na explicitação de suas teorias: trata-se da Economia! Especialmente desde que Von Neumann e Morgenstern[10], o primeiro um dos expoentes modernos da área de Matemática, especialmente da chamada Teoria dos Jogos, estabeleceu, lógica e rigorosamente, os fundamentos da Economia moderna, junto com seu colega do Instituto de Altos Estudos da Universidade de Princeton, as bases da Microeconomia contemporânea. Elas foram seguidas por Paul Samuelson que, poucos anos depois, também publicou seu aclamado Foundation of Economic Analysis[11].

A Figura II.3.1 mostra, esquematicamente, as cinco fases do método científico. Muita contribuição importante à ciencia é dada por pessoas que esclarecem somente parte, ou partes, das mencionadas fases; na Física, por exemplo, existem inúmeros pesquisadores que deram contribuições importantíssimas ao desenvolverem modelos – ou teorias – que só posteriormente foram testadas e que ajudam na montagem do enorme edifício do conhecimento científico atual. Por outro lado, igualmente importante foram os trabalhos dos pesquisadores que testaram hipóteses derivadas das teorias propostas e puderam, assim, aumentar ou reduzir a confiança das pessoas naquelas teorias. As teorias são aceitas ou, mais precisamente, são não negadas, até que, ou enquanto, a engenhosidade humana consiga confrontar hipóteses delas logicamente derivadas com dados do mundo físico (e os expressos como reações mentais) e elas continuam passando, ou falhando na sua verificação empírica, nos testes estatísticos. Quando não passam mais nos testes, elas devem ser ampliadas ou substituídas por teorias mais poderosas ou abrangentes e capazes de explicar os novos dados assim coletados.

Um exemplo, amplamente discutido na literatura, ilustra a necessidade de ampliação ou substituição de teorias que, apesar de resistirem por muito tempo aos testes das hipóteses delas derivadas, é dado pelos princípios – teoria – de Isaac Newton que tratam de fenômenos explicados pela chamada força da gravidade. Nos mais de três séculos decorridos desde a publicação do seminal livro daquele autor, praticamente todos os testes estatísticos que utilizavam os princípios Newtonianos aceitavam – ou, mais precisamente, não negavam sua validade. Somente com a sofisticação mais recente do instrumental físico-químico disponível para pesquisadores, foi possível determinar que, embora as leis de Newton funcionem muito bem quando trabalhamos com fenômenos observáveis com as mensurações de valores típicos das escalas humanas, – do milímetro até os milhões de quilómetros, do miligrama até as milhões de toneladas e de milisegundos até milhares de anos, por exemplo – elas não funcionam quando consideramos as dimensões sub-atômicas ou as estelares. As teorias necessárias para explicar alguns fatos observáveis no mundo físico, especialmente os dos mundos sub-atômico e estelar tiveram que ser reformuladas como feito por gênios mais modernos do pensamento científico, tais como Albert Einstein, Max Planck, Werner Heisenberg, Stephen Hawking e Ilya Prigogine, entre outros.    

A outra forma de negação de uma teoria é conseguida quando é possivel mostrar sua inconsistência lógica interna; em outras palavras, o método da ciência não aceita o sofisma! A matemática tem sido um importante instrumento no apontamento deste tipo de inconsistência que, às vezes, os limites de nossa intuição nos impede de perceber. Novamente, as exigências da Física, de equacionamento, ou da expressão lógica-algébrica, das suas teorias, mostra o caminho que os diversos ramos das ciências devem procurar seguir no escopo ou procura por seu aprimoramento. Além da Economia, outros ramos das ciências sociais têm utilizado os encadeamentos lógico-matemáticos que suas teorias sugerem existir, de forma surpreendente para os leitores não avisados: entre os inúmeros grupos que estão utilizando o método nas chamadas ciências sociais, a Sociologia, por exemplo, tem em uma importante corrente de pensamento, privilegiada pelo grupo da Universidade de Chicago e liderado por outro gigante de sua área – James S. Coleman – permitido o uso do método científico como descrito nos cinco passos do Quadro II.3.1. Por outro lado, a importante corrente de pensamento alemã, que é fundada na visão histórica dos agrupamentos humanos – o do historicismo alemão – foi rigorosamente demonstrado, por Sir Karl Popper, não satisfazer os encadeamentos lógicos exigidos de teorias científicas[12]. Desta forma, a unificação metodológica do pensamento científico vai sendo conseguida, por meio da incorporação gradativa das diversas áreas das ciências sociais.

III. Avanços do Conhecimento Científico desde o Iluminismo

Na visão dos autores, o eixo fundamental do desenvolvimento do conhecimento científico está associado à competitividade – countervailing power, ou poder da contraposição ‒ na luta pela prevalença do mais forte. Desde Machiavelli, e claramente explicitado e compreendido por David Hume, Rosseau e Montesquieu, entre outros no Iluminismo, os indivíduos passaram a ser vistos como seres desejantes, ou que procuravam, acima de tudo, satisfazer seus interesses e os de seus entes queridos. Esta visão contrastava com a visão religiosa predominante na idade média, segundo a qual as pessoas existiam para exaltar a Deus, cumprir seus desígnios e aprimorar as virtudes de cavalheirismo e alinhamento aos destinos superiores da Igreja e da aristocracia. A verdade revelada deixou de ser a única fonte do conhecimento humano, cedendo lugar à razão, permitida pelo fato de Deus ter dado ao homem o livre arbítrio[13].

Como brilhantemente mostrado por Albert O. Hirschman em “The Passions and the Interests: political arguments for capitalism before its triumph” (As Paixões e os Interesses: argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo), a aceitação generalizada de que o interesse individual move as pessoas permitiu o entendimento do papel fundamental que o comércio tinha, ou podia ter, na redução das relações tirânicas entre os povos e no correspondente ganho de bem estar para as populações. A compreensão do efeito econômico das vantagens comparativas e do comércio permitiram a Adams Smith publicar seu seminal The Welth of the Nations (A Riqueza das Nações), marco fundamental da construção de teorias sociais científicas. Um outro gigante do pensamento humano expandiu para todos os seres vivos as características do poder de contraposição.     Cerca de meio século após a publicação do trabalho de Adams Smith, Charlles Darwing publicou seu “Sobre a Origem das Espécies” que generalizou para todos os seres vivos o que A. Smith mostrou ser válido para a humanidade. Ao mesmo tempo, a Física continuava a expandir o conhecimento sobre o funcionamento do mundo físico em geral, basicamente assentado nos trabalhos de dois grandes pensadores da área, Galileu Galilei e Isaac Newton. Um outro grande passo no aprimoramento do método da ciência foi dado pelo avanço da Estatística Experimental e da Estatística em geral, que permitiu o teste das hipóteses, tanto nas áreas das ciências físicas quanto nas da ciências sociais. Desta forma, passando por Pasteur, Mendel, Einstein e outros gigantes do pensamento científico, este tipo de conhecimento foi se aperfeiçoando até atingirmos algumas das fronteiras atuais que vão muito além do que nossa intuição sugere.

A humanidade aprendeu, por processos culturais que, ao longo dos milênios pode, ou não, ter sido incorporados à sua carga genética, que a cooperação pode vantajosamente substituir a competição em inúmeras relações entre os indivíduos. Na produção científica, em particular, e na produção do conhecimento humano, em geral, a cooperação tem desempenhado papel de destaque. Em inúmeras outras áreas – militares e econômicas, por exemplo – algumas atitudes cooperativas têm, também, substituido os impulsos genéticos de competição que caracterizam a espécia humana. 

IV. Implicações ou conclusões   

Todos os conhecimentos listados na base da Figura II.2 são do tipo prescritivo ou normativo. Todos se destinam a aperfeiçoar a ação humana nas suas relações entre pessoas, instituições e as demais coisas do mundo. São, portanto ideológicos! Não são científicos. Como visto, o conhecimento científico não se presta, como corolário do método utilizado na sua obtenção, a indicar formas prescritivas ou normativas de comportamento humano. Como no problema típico de algumas ciências, de achar o máximo de alguma função definida sujeita a restrições claramente explicitadas, o conhecimento científico pode ser utilizado como restrição ao atingimento de determinados pontos extremos – máximo ou mínimo – que podem ser do tipo prescritivo ou normativo. O papel de explicitar as restrições, preferencialmente quantificando-as, é a principal contribuição que a ciência pode dar à humanidade nas escolhas que as pessoas e os grupos sociais precisam fazer.

É devido à limitação intrínseca aos conhecimentos derivados do método científico que Hayek nos ensina que os detentores eleitos de cargos públicos devem fazer as escolhas políticas dos objetivos a serem alcançados, mas devem deixar aos cientistas a forma ou os caminhos a serem seguidos para seu atingimento. De fato, em democracias mais maduras são corriqueiras as audiências públicas, nos congressos e em áreas dos poderes executivos, para as quais cientistas reconhecidos são convidados para indicar os prós e contras da implementação de caminhos alternativos para que sejam alcançados os objetivos específicos das diferentes políticas propostas.

Embora a democracia brasileira não tenha demonstrado, ainda, o amadurecimento desejável que permita a inclusão rotineira de cientistas na implementação dos caminhos para alcançar objetivos políticos, é fundamental que a Universidade coloque o conhecimento gerado à disposição da socidadee e, ao mesmo tempo, interaja cada vez mais com a comunidade científica internacional. Nesse sentido, a Faculdade de Ciências Agrárias e Tecnológicas (FCAT) da Unesp transformou o evento que realizava anualmente, em evento internacional que passou a se chamar International Meeting of Agrarian Science and Technology – IMAST. No IMAST realizado em 2018, além da publicação dos anais do evento que já eram tradicionais, a FCAT passou a publicar um livro com capítulos redigidos pelo seu corpo docente (em parceria ou não com outros pesquisadores).  A  referida publicação, disponívem em http://www.culturaacademica.com.br/catalogo/imast-2018/ elevou a outro patamar o evento realizado até então. Ele abre espaço para a divulgação das linhas de pesquisa existentes na Unesp/FCAT e possibilita o amadurecimento da sociedade quanto ao potencial de geração de conhecimento científico disponível na universidade pública.

No intuito de colocar o conhecimento à disposição da sociedade, para o 3º. IMAST, a FCAT traz seu segundo livro, em dois volumes. Do primeiro volume, constam os capítulos nas linhas de pesquisas do Departamento de Produção Vegetal da FCAT e, do segundo volume, linhas de pesquisa do Departamento de Produção Animal. O primeiro, portanto, é o volume composto por capitulos que abordam o solo tanto física como quimicamente e as tecnologias voltadas a aumentar a eficiência de aplicação dos chamados insumos modernos e da produção nas diferentes espécies vegetais de interese econômico.  O segundo volume, que iniciamos com o presente capítulo, seguirá com um assunto que se insere em ciência social (Economia, mais precisamente Microeconomia). Trata-se de uma contribuição para a compreensão do consumidor de produtos aos quais pesquisadores de ciências agrárias se dedicam. Na sequência, são oito capítulos  que tratam de problemas na produção animal. Abordam, com o método científico, problemas de saúde, reprodução e alimentação em frangos, bovinos e peixes.

[1] Ferry, Luc. Aprender a Viver: filosofia para os novos tempos. (Tradução de Vera Lúcia dos Reis) Rio de Janeiro: Objetiva, 20017

[2] Russel, Bertrand. The Problems of Philosophy. Mineola, N.Y. Dover Publications, Inc., 1999

[3] Os “daltônicos” veem determinadas coisas com uma coloração diferente da que os não daltônicos percebem; pelas leis da Ótica, indivíduos colocados em pontos de observação diferentes veem formas diferentes. Qual a cor verdadeira dos objetos percebidos? É preciso ter em conta que é relativamente recente, na história humana, o reconhecimento desta “doença”; quantas outras serão descobertas? Qual a forma verdadeira dos objetos que percebemos? Estes são exemplos mencionados por B. Russel quando coloca o problema da existência objetiva dos fatos que percebemos!

[4] Tradução livre de Russel, Bertrand. Human Knowledge: it’s scope and limits. Forge Village, Mass.: Murray Printing Co., 1948

[5][5] Ver, por exemplo, Popper, Sir Karl R. Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária. (Tradução de Milton Amado) Belo Horizonte: Ed. Ita, 1975

[6] Ver Harari, N. Yuval. Sapiens. Uma breve história da humanidade. (Tradução de Janaína Marcoantonio) Porto Alegre: L&PM. 2016

[7] A wikipedia traz a seguinte consideração [acessada em 01/10/2016], acerca de uma das possíveis origens do termo religião: “Modern scholars such as Tom Harpur and Joseph Campbell favor the derivation from ligare “bind, connect”, probably from a prefixed re-ligare, i.e. re (again) + ligare or “to reconnect”, which was made prominent by St. Augustine, following the interpretation of Lactantius.. In The Pagan Christ: Recovering the Lost Light. Toronto. Thomas Allen, 2004. ISBN 0-88762-145-7 and In The Power of Myth, with Bill Moyers, ed. Betty Sue Flowers, New York, Anchor Books, 1991.ISBN 0-385-41886-8”.

 

[8] Estamos tratando basicamente do enfoque identificado com o chamado “Positivismo Lógico” como adotado por Karl Popper.

[9] Hans Kelsen. A Teoria Pura do Direito. ….

[10]   Von Neumann, John and Morgenstern, Oskar. Theory of Games and Economic Behavior. Princeton University Press, 1944

[11] Samuelson, Paul A. Foundation of Economic Analysis. Harvard University Press.1947

[12] Ver Popper, Sir Karl. A Miséria do Historicismo.

[13] Machiavelli. O Principe

Compartilhe:

COMUNICAÇÃO EM TEMPOS DE RECLUSÃO

Nestes tempos de reclusão forçada, um grupo formado por quatro professores/pesquisadores de áreas das ciências agrárias está iniciando este novo canal de comunicação com leitores interessados no funcionamento eficiente do agronegócio brasileiro, e propondo, também, a expressar visões e valores vistos como relevantes no atingimento da cidadania plena dos membros do agronegócio brasileiro. Artigos de interesse conjuntural, de desenvolvimento do setor e da sociedade em geral, além de opiniões sobre o funcionamento das instituições brasileiras na promoção da cidadania, serão discutidos no espaço aberto por este instrumento de mídia eletrônica. O time, formado por José Roberto Canziani ¹, Vania Di Addario Guimarães ², Fernando Curi Peres ³ e Renato Roscoe – do Blog “OPINIÕES DO CAMPO” – se propõe a postar quinzenalmente um artigo de opinião julgado relevante pelo grupo. Cada artigo de um autor poderá ser seguido por comentários de outro, de forma a enriquecer e/ou apreciar seu conteúdo com considerações pertinentes. As responsabilidades pelo conteúdo de cada artigo e comentários são dos respectivos autores.

            Cada artigo e respectivo comentário, quando existente, será postado, simultaneamente, em diferentes veículos – Instagram, Facebook, Youtube, … – e os leitores são estimulados a se inscreverem no canal para garantir o acesso periódico ao material postado. Manifestações dos leitores poderão, a critério exclusivos dos autores, serem publicados na seção do Blog denominada “Comentário de Leitores”. Os autores reservam o direito de desconhecerem comentários raivosos, incitadores de violências e os que usam linguajar não julgado apropriado.

             Os responsáveis pelo Blog “OPINIÕES DO CAMPO” reconhecem que não existe opinião neutra no seu sentido ideológico e que uma das formas mais honestas, ou objetivas, de manifesta-las é indicando ao leitor quais são seus valores morais e princípios éticos fundamentais no desenho e funcionamento de instituições sociais, políticas e econômicos nas quais acredita. De fato, o grupo acredita, seguindo a seminal orientação de Gunnar Myrdal 5, que mesmo quando estão perseguindo a objetividade ideal do chamado método das ciências, os autores devem mostrar seus valores e crenças, para que o leitor saiba o que esperar de sua leitura. 

               Além da convivência próxima entre os membros do mencionado grupo do Blog “OPINIÕES DO CAMPO”, há concordância entre eles acerca das suas visões liberais sobre o melhor funcionamento dos agrupamentos humanos nas suas atividades econômicas-políticas-sociais, especialmente nas análises dos negócios do Agro, embora o Blog não necessariamente terá que se limitar a análises sobre o setor. Eles acreditam em um humanismo antropocêntrico, renegando privilégios de classes de qualquer estilo e/ou forma e acreditam nos princípios liberais de liberdades de escolha, de manifestação e de direito de posse dos fatores primários de produção. Além disso, creem que, em geral, ou só com algumas exceções, os mecanismos de mercado são superiores às escolhas burocráticas sobre alocação de recursos produtivos nas economias. Acreditam que o critério meritocrático deveria ser utilizado nos processos de escolhas sociais e a igualdade de oportunidades a todos deveria ser sempre assegurada. Acima de tudo, creem que o sistema de voto livre para escolha da representação política é sempre superior à delegação, mais ou menos permanente, do direito de representação e escolhas políticas-econômicas-sociais a qualquer subgrupo da sociedade; além disso, sabem que: 

                   “Virtually all economic policies, even those not explicitly intended to do so, entail some redistribution of income! (Tweeten, 1070. Pg.302)”6

e se propõe a analisá-las em todas suas consequências econômicas e em alguns aspectos
sociais e políticos

 ¹ Doutor em Ciência e Professor Associado da UFPR

² Doutor em Ciência e Professora Associada da UFPR

³ Ph.D. e Professor Titular aposentado (Senior) da ESALQ/USP

 Ph.D. e Consultor Independente

 

5 Appendix 2, “A Methodological Note on Facts and Valuations in Social Science” In: MYRDAL, Gunnar.1944. An American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy. New York: Harper & Row.

6 “Praticamente toda política econômica, mesmo a que não tem como objetivo a redistribuição de renda, provoca alguma redistribuição” (tradução livre) de TWEETEN, Luther. 1970. Foundations of Farm Policy. Lincoln: University of Nebraska Press.

Compartilhe: