BRASIL: TERRAS CONSTITUCIONALMENTE IMPRODUTIVAS?

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O desconhecimento por parte da maioria dos legisladores brasileiros que elaborou a Constituição de 1988 e, principalmente, que aprovou o Código Civil de 2002, permitiu a ocorrência de problemas que têm custado muitas ineficiências à nossa agricultura, causando prejuízos ao funcionamento harmônico da sociedade e, consequentemente, à capacidade de consumo da população do país. Trata-se da introdução, naqueles documentos legais, dos conceitos de função social da propriedade (da terra), em particular, e da função social dos contratos, em geral. Embora o problema seja menor no caso da Constituição Federal, uma vez que ela explicita o que deve ser entendido como as condições que caracterizam o descumprimento da função social da propriedade rural, as suas cláusulas abertas[1], principalmente as do Código Civil, do que seria o cumprimento da função social dos contratos, têm trazido muita insegurança jurídica, tanto à agricultura, quanto aos demais setores da economia.

Constitucionalmente, o não cumprimento da função social da propriedade pode acarretar, entre outras penalidades impostas ao proprietário, sua desapropriação para fins de reforma agrária. A Carta Magna define o não cumprimento da função social da propriedade rural quando, em seu uso, pode ser observada uma ou mais das seguintes condições: (i) a utilização dos seus recursos naturais com o uso de processos que não preservam adequadamente o meio ambiente; (ii) a não observância da legislação trabalhista nas relações de produção da propriedade com seus recursos humanos; e (iii) a não utilização mínima do potencial produtivo das terras da propriedade. Esta última condição, diretamente relacionada à produtividade das áreas foi a principal justificativa para a maior parte das desapropriações ocorridas desde meados dos anos noventa do Século XX, período em que foram fortemente expandidas as ações de desapropriação e de assentamentos rurais, também chamadas de ações de Reforma Agrária.

Com exceção do estímulo ao uso de processos adequados de preservação dos recursos naturais, as duas outras exigências para cumprimento constitucional da função social da propriedade – utilização mínima do potencial produtivo da terra e adequação às normas da legislação trabalhista – causam, possivelmente, mais malefícios que benefícios à sociedade brasileira. As exigências da legislação trabalhista causam mais conflitos do que servem para harmonizar as relações de trabalho na agricultura. Baseada na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, a nossa legislação trabalhista sempre ignorou as exigências específicas das condições de produção na agricultura, especialmente as necessidades de horários, deslocamentos e concentração temporal de horas trabalhadas. Dificilmente as normas pensadas para as atividades de trabalho em escritórios, chão de fábrica e comércio nas cidades podem e devem ser utilizadas em culturas ou atividades realizadas a céu aberto e sujeitas a intempéries que variam com as estações do ano. Apenas recentemente algumas normas trabalhistas da antiga CLT foram objeto de aprimoramentos e, consequentemente, têm diminuído as tensões entre o capital e o trabalho no agro e na sociedade.

O problema relacionado à definição do que seria o uso mínimo adequado dos recursos naturais de uma propriedade se encontra na adoção, quase sempre, do critério de utilização média da terra. Quando são fixados os índices mínimos de utilização da terra, como, por exemplo, o número mínimo de suporte de unidades animais (UAs) por ha de pastagem, a produtividade mínima das lavouras, ou outros critérios similares, os técnicos responsáveis pela fixação dos valores limites tendem a utilizar parâmetros médios regionais como valores exigíveis para sua consideração como adequados. Esta forma de fixação de uso mínimo da terra, como condição constitucional para definir a propriedade como produtiva leva, se correta e recorrentemente aplicada, a considerar todas as propriedades como improdutivas.

Um exemplo pode ajudar no entendimento de como o uso de valores médios nos cálculos dos requerimentos mínimos de utilização das terras implica sérias distorções nos objetivos da política. Considere-se, por exemplo, o caso da pecuária de corte, uma das atividades mais visadas pelos defensores das desapropriações. Neste caso, a mensuração da utilização adequada da terra é feita com o auxílio do conceito de uma unidade animal (UA), definida como a capacidade de suporte de equivalentes aos requerimentos de pastagem de uma vaca com peso de 450 kg. Usando o conceito, uma novilha de dois anos é equivalente a 0,65 UA, que equivale ao consumo de um animal com menor peso e menos exigências nutricionais que deverão ser fornecidas pelas pastagens. Pela conversão de todos os animais aos seus equivalentes UAs pode-se estimar o grau de uso das pastagens de uma propriedade. Como o uso de valores médios leva ao problema mencionado?

Para cada uma das mais de 500 sub-regiões produtivas em que o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – divide o país, os técnicos do INCRA calculam valores mínimos em UA/ha que as propriedades devem apresentar para serem consideradas produtivas. Como mencionado, o problema surge quando utilizam valores médios regionais para estabelecer os valores mínimos exigidos[2]. À época do estabelecimento dos últimos valores limites, isto levou o Sr. Raul Jungman, então Ministro do Desenvolvimento Agrário do Brasil, a anunciar pelas TVs que o INCRA tinha encontrado um índice de 50% de sub-utilização das terras de pastagens no Brasil. De fato, a única coisa que ele anunciou foi que seus técnicos não tinham errado nas contas que resultaram naquele índice. Quando se usam valores médios regionais, no agregado resultante de grandes números de regiões, o resultado tinha, tautologicamente, que indicar 50% de propriedades improdutivas[3]. Se as improdutivas fossem desapropriadas e, mais uma vez, o critério fosse utilizado nas propriedades restantes, ele, novamente, indicaria que 50% eram improdutivas e o processo continuaria até que todas as propriedades fossem assim classificadas. Fica para o leitor o exercício de explicar como a agricultura tropical mais eficiente do mundo tem todas suas terras subutilizadas segundo o critério constitucional do país, como definido pelo INCRA!

 

[1] Cláusulas não claramente definidas nos textos legais e deixadas, portanto, a ter sua conceitualização e utilização prática aberta a visões alternativas dos aplicadores do Direito.

[2] O leitor deve notar que dificilmente os técnicos de uma região terão condições de fixar valores muito diferentes dos valores médios locais porque, além da capacidade de lotação das pastagens indicadas em experimentos agronômicos, valores monetários e inúmeros outros custos e preços dos produtos entram no cálculo dos valores econômicos relevantes. Por isso, os técnicos tendem a fixar os valores mínimos do índice em parâmetros próximos aos médios observados localmente.

[3] Se o número de regiões é grande, um teorema da Estatística – Teorema do Limite Central – indica que independentemente das distribuições probabilísticas regionais, a distribuição estatística do agregado tende para a normalidade, com média igual à mediana. Como a mediana divide o espaço em duas partes iguais, 50% das observações estarão, necessariamente, abaixo da média.

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1 thought on “BRASIL: TERRAS CONSTITUCIONALMENTE IMPRODUTIVAS?”

  1. Prof. Fernando, achei bastante interessante sua abordagem sobre a função social das terras no Brasil, à luz de nossa Carta Magna. Embora concorde plenamente com a necessidade de se estabelecerem constitucionalmente as diretrizes para que as terras tenham sua função social garantida, a forma como se regulamentou e se normatizou tal uso claramente carece de revisão pelas instâncias competentes.
    Avançando um pouco mais nessa discussão, entendo ser oportuno levantar uma questão fundamental. Mesmo que fossem justos os critérios estabelecidos (o que não me parece ser o caso), seriam eficazes as soluções propostas para o uso de tais terras ditas improdutivas? A destinação dessas áreas para a Reforma Agraria, nos moldes adotados no Brasil, seria uma solução eficaz em retomar a função social desse importante ativo da nossa nação? Tenho algumas dúvidas sobre isso e chamaria a atenção para dois aspectos que julgo fundamentais para se entender a baixa efetividade dos programas de reforma agrária (sem a pretensão de ser exaustivo aqui nos argumentos levantados).
    Um primeiro aspecto está ligado ao princípio de fracionar as áreas e distribuí-las aos agricultores. Analisando as tendências globais para o setor agrícola, a necessidade de escala, constância de produção e padrões de qualidade são fatores que vêm reorganizando as cadeias produtivas agropecuárias. Tais mudanças estão relacionadas a uma população crescente e concentrada em centros urbanos (86% dos brasileiros vivem nas cidades e adotam hábitos de consumo tipicamente urbanos). Isso exige uma organização das cadeias produtivas para fazer com que os alimentos cheguem a esses seres humanos que não mais conseguem caçar, coletar ou mesmo cultivar sua própria comida. Isso exige sistemas de produção organizados, transporte, armazenamento, redes de distribuição nos centros urbanos. Níveis de complexidade que passam a exigir profissionalização e coordenação precisa dessas cadeias. As propriedades maiores e mais organizadas conseguem gerar fluxos de suprimento com o volume, constância e padronização exigidos pelos consumidores urbanos. Os pequenos produtores perdem a competitividade e são excluídos do mercado.
    O segundo aspecto a ressaltar é que os “latifúndios improdutivos” geralmente estão localizados em regiões desprovidas de infraestrutura e, com grande frequência, em áreas de solos pouco produtivos. As porções de terra próximas aos grandes centros ou com maior potencial produtivo são as mais fracionadas e menos propensas a entrarem em programas de reforma agrária. São inúmeros os casos de assentamentos implantados em regiões isoladas, com estradas precárias e solos de baixa qualidade. Tive a oportunidade de conhecer alguns exemplos, em Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Tocantins e Amazonas. Assentamentos onde a capacidade de produção (condição edafoclimática) já era baixa e, ainda por cima, estavam praticamente isolados logisticamente.
    A pergunta que surge é: será que fracionar porções de terras improdutivas em regiões longínquas e em solos de baixa qualidade seria solução para resgatar sua função social? Entendo que não! Essa combinação na realidade tem gerado assentamentos muito pobres e com sérias dificuldades competitivas: sistemas de produção que muitas vezes nem garantem o mínimo para a subsistência dos agricultores.

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