Fernando Curi Peres

A EXPLORAÇÃO DO TRABALHADOR E A POSSE DA TERRA

Desde a fundação do Partido Comunista no Brasil, ocorrido na década dos vinte do século passado, uma parte importante da intelectualidade brasileira foi cooptada pelo marxismo ou, pelo menos, aceitou algumas interpretações da corrente de pensamento capitaneada por aquele brilhante idealista. Como marcante criador utopista, na mesma linha que a originalmente idealizada por Platão, Marx sonhou com um tipo de sociedade perfeita. Como grande analista que era, ele propôs conceitos que definiam como os trabalhadores eram explorados pela classe dominante – a capitalista – que se apropriava do que, de direito, deveria pertencer aos trabalhadores. No Brasil, um estudioso e notável seguidor do marxismo na descrição de nossa história, Caio Prado Junior, teve um papel fundamental na divulgação daqueles valores ideológicos, especialmente para os formadores do pensamento jurídico nacional e, consequentemente, do pensamento político prevalente até meados do Século XX. Como conceituado historiador e professor da Faculdade de Direito da USP, a velha academia do Largo de São Francisco, criada por decreto de Dom Pedro I, Caio Prado influenciou fortemente o pensamento analítico nacional, influência esta que extravasou as áreas jurídicas, sendo incorporada às diversas visões políticas que se seguiram e que, ainda hoje, pode ser encontrada em livros textos e de divulgação sobre a história do Brasil.

Uma medida da renda, ou do produto, de uma economia é dada pela soma das remunerações aos chamados fatores primários de produção – (i) ao trabalho, (ii) à terra ou aos recursos naturais, (iii) aos capitais físicos e financeiros e (iv) ao recurso empresarial. O esquema abaixo mostra uma maneira de calcular o Produto Interno Bruto – PIB – uma medida da renda gerada nas economias

O PIB é, desta forma, uma maneira de avaliar o esforço produtivo de uma economia. Ele é a soma, a preços de mercado, das remunerações aos quatro fatores primários de produção da economia que, no Brasil, é oficialmente calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE. Os salários incluem os prolabores quando os donos do negócio desenvolvem funções além da gestão empresarial. Os arrendamentos são, às vezes, chamados de alugueis. Os termos interno e bruto do PIB merecem algumas explicações. Produto Interno, ou doméstico, porque nem tudo que é produzido, ou gerado, no país fica com seus residentes. Uma parte dos fatores primários de produção atuando na economia pode pertencer a residentes de outras economias. O interno se refere ao que é gerado no país. Se o PIB for corrigido pela adição do valor da subconta “Rendas” da conta Serviços do Balanço de Pagamentos – ela mede o saldo líquido das entradas e saídas das remunerações aos fatores primários de produção – o resultado é denominado Produto Nacional Bruto (PNB). É uma medida da apropriação pelos residentes de um país dos produtos ou da renda gerada pelos fatores de produção que lhes pertencem, tanto os localizados no país quanto os localizados no exterior. O bruto refere-se à não correção da medida – PIB – para a depreciação dos fatores produtivos, especialmente dos capitais físicos. Marx utilizou os componentes da renda para mostrar o que ele conceituou como a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas.

Na visão de Marx, toda a renda gerada nas economias deveria pertencer, ou ser apropriada, pelos trabalhadores. A apropriação pelos capitalistas – donos dos recursos naturais, dos bens de capital e dos recursos empresariais – das respectivas remunerações – os arrendamentos ou alugueis, os juros e os lucros – era uma medida da exploração dos trabalhadores pela classe dos donos dos capitais. Ele chamou estas remunerações de Mais Valia. Na sociedade que deveria caminhar para a utopia correspondente a seu sonho – o paraíso comunista – não deveriam existir empresários e as remunerações aos outros fatores de produção recolhidas pelo estado, uma vez que o estado deveria, em nome dos trabalhadores, apropriar-se de eventuais juros e arrendamentos que seriam destinados aos donos da força de trabalho. Todos seriam funcionários públicos e o estado, gerido pelo Partido Comunista, estaria inteiramente voltado para o bem estar dos trabalhadores. Assim, não existiria Mais Valia, ou a apropriação pelos capitalistas dos arrendamentos ou alugueis, dos juros e dos lucros. Toda a renda seria dos trabalhadores!

Como, na visão marxista, a posse dos fatores primários de produção era a forma de criação da Mais Valia – a medida da exploração do trabalhador pelo capitalista – a posse da terra deveria explicar a existência da pobreza nas atividades do agro. Toda sorte de raciocínio foi utilizada para atribuir à posse da terra as causas da desigualdade na distribuição da renda do setor. Foram esquecidas as políticas que empobreceram nosso agro – (i) taxação das exportações já que praticamente todos os itens na pauta das exportações brasileiras eram de produtos primários; (ii) taxas de câmbio supervalorizadas, que penalizavam as exportações do agro e beneficiavam as importações; (iii) tabelamentos dos preços dos produtos da agricultura, com o leite, o feijão, o arroz, bem como todos os produtos das cestas de alimentação brasileiras sendo tabelados; e a (iv) taxação inflacionária, que é particularmente perversa com as camadas mais pobres da população – e a posse da terra era sempre apresentada como a principal causa da pobreza no campo. Todas as resultantes das políticas destinadas a extrair recursos financeiros e humanos do agro para financiar e tripular as cidades foram esquecidas e a posse da terra apontada como a grande vilã da pobreza rural.

A posse da terra, no Brasil, é sempre apresentada como privilegiadora da camada mais rica da população, pelo sistema de sesmarias das capitanias hereditárias que teria gerado o fenômeno do latifúndio. È uma análise viesada, ou intencionalmente errada, porque ignora o fato da maior parte da ocupação privada da terra no país ter ocorrido pelo fenômeno da posse[1]. Exceto pelas áreas destinadas às grandes plantações (plantations) cujas ocupações eram outorgadas pelos líderes das capitanias hereditárias, praticamente todas as demais áreas eram apossadas pelos homens livres. O acesso à terra nunca foi um fator limitante, exceto num curto período do Século XIX, à criação de novas unidades produtivas na agricultura. Mesmo os autores que utilizam a orientação marxista em suas análises, admitem que a simples posse de áreas foi a principal forma de ocupação privada das terras no Brasil; para fornecer animais de tiro, carnes e outros alimentos para os trabalhadores das plantations e dos centros urbanos e mineradoras, além de couros para as exportações e usos domésticos, grande número de unidades produtivas foram criadas em todo o território nacional[2]. Até na segunda metade do século passado ainda era possível ocupar terras muito férteis em diversos estados do país, sem pagar nada ou pagando valores irrisórios, incluindo certas regiões muito férteis do Paraná. Dizer que a posse da terra está na raiz da explicação da pobreza no agro é, simplesmente, um alinhamento ideológico específico com reduzido poder analítico.

 

[1] da Costa, Emilia Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. (9ª Ed.) São Paulo: Editora UNESP.2010

[2] Furtado, Celso. Formação econômica do Brasil. 34ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

Compartilhe:

CONSIDERAÇÕES SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE DA TERRA

A Constituição do Brasil consagrou o conceito de função social da propriedade e nosso Código Civil expandiu grandemente esta qualificação aos contratos. Na conceituação da função social da posse da terra, o constituinte foi cuidadoso e delimitou, com alguma objetividade, as condições que indicariam se ela estaria, ou não, cumprindo sua função social. O Código Civil, por outro lado, usou cláusulas abertas como alternativas ao cumprimento daquela função social nos julgamentos sobre os papéis desempenhados pelos contratos civis. O resultado tem contribuído para o aumento da insegurança no funcionamento institucional no país, diminuindo, em vez de aumentar, a paz social, objeto maior que justifica a existência de sistemas jurídicos nas sociedades. Sobre os malefícios desta característica do Código Civil falaremos em outro artigo. Aqui, trataremos da função social da propriedade da terra.

O Direito brasileiro tem forte influência do romano-germânico. Em sua autossuficiência, no sentido de considerar pouco os resultados obtidos pelas ciências[1] nas suas análises doutrinárias, o Direito considera muito, e recorrentemente, o sempre aludido direito natural – ius naturale – ou jusnaturalismo. Entre estes direitos naturais estaria a posse dos fatores primários de produção – recursos naturais ou terra, força de trabalho, bens de capitais físicos e financeiros – e sua posse e uso ocorreria, portanto, por direito natural das pessoas. A posse dos recursos naturais, ou da terra, seria, portanto, parte deste direito. Nesta linha de raciocínio, a constituição alemã promulgada após a Primeira Guerra Mundial, ou a Constituição de Weimar de 1919, indica que “a propriedade obriga” no sentido de que o exercício do direito de posse da terra obriga o possuidor a exercer determinados usos de interesse social. A correta leitura do desenvolvimento das sociedades humanas que a ciência oferece mostra que a propriedade da terra já cumpre, por si só, uma função social. Assim, falar em função social da propriedade torna-se uma tremenda e desnecessária redundância!

As comunidades humanas primárias, ou tribais, não têm, ou não tiveram, necessidade do conceito de propriedade privada da terra. Embora exista no DNA humano traços genéticos de sentimentos de territorialidade, o que é comum a um grande número de espécies animais, ela se refere principalmente à propriedade tribal, ou conjunta, de determinada área de terra. A propriedade privada da terra só aparece nas comunidades humanas mais recentes, certamente após o domínio da agricultura pela espécie. Em sociedades de caçadores/coletores não havia(há) necessidade de propriedade privada da terra, o que torna a sua consideração como um direito natural sem nenhum sentido. Ele não é natural! A instituição da propriedade privada da terra foi uma necessidade das sociedades humanas complexas, definidas pela especialização do trabalho nas comunidades. É uma instituição fundamentalmente cultural. Portanto, não faz sentido falar da propriedade da terra como um direito natural, como fizeram inúmeros filósofos, religiosos e políticos ao longo da história ocidental, desde os gregos.

Um importante cientista e filósofo do século passado, Frederick Hayek, em entrevista ao autor do livro “Os Verdadeiros Pensadores do Nosso Tempo”[2], foi categórico ao afirmar que:

 

“As sociedades que não apresentam a complexa distribuição do trabalho das modernas economias – não exigiram e, consequentemente, não criaram os institutos da propriedade privada e de contratos formais. Ele [Hayek] diz que os socialistas, que não aceitam a propriedade privada e os contratos formais entre particulares, são saudosistas de épocas tribais remotas de suas sociedades. De fato, as economias de mercado incorporam novos institutos à medida que a experiência prática mostra sua utilidade para a sociedade. Nenhum grupo social em particular inventou os institutos da propriedade privada e do contrato. Estes aparecem em todas as sociedades desenvolvidas porque são exigências, ou pré-requisitos, para o desenvolvimento destas. Assim, eles são naturalmente sociais. As funções que desempenham nos agrupamentos humanos são, por sua própria origem, sociais.”[3]

 

O conceituado economista e ex-presidente do Federal Reserve Bank dos USA, por 18 anos, Alan Greenspan, mostra a importância do instituto da propriedade privada em seu livro de memórias publicado em 2006. Esta importância é relatada como resultado de sua rica experiência na análise do desenvolvimento econômico de inúmeras nações. Ele aponta três condições necessárias para se conseguir aquele objetivo:

 

“1) a extensão da competição interna e, sobretudo para os países em desenvolvimento, a extensão da abertura do país para o comércio e sua integração com o resto do mundo; 2) a qualidade das instituições do país, que contribuem para o funcionamento da economia; e 3) o sucesso de seus formuladores de políticas na implementação das medidas necessárias à estabilidade macroeconômica”[4].

No entanto, Greenspan mostra sua crença no papel de instituições fortes e respeitadas como importantes condicionadoras do desenvolvimento das sociedades.

 

“Minha experiência me leva a considerar a garantia do direito de propriedade pelo Estado a principal instituição promotora do crescimento, pois, sem essa certeza, de pouco adiantariam o livre comércio, os enormes benefícios da competição e as vantagens comparativas”[5].

Ele continua dizendo que:

“As pessoas em geral, não se esforçarão para acumular o capital necessário ao desenvolvimento econômico se não tiverem certeza de sua propriedade. Esta, por sua vez, pode estar sujeita a muitas condições. Eu realmente sou dono de um pedaço de terra ou tantas são as restrições à minha propriedade que ela é de pouco valor para mim? Ou, ainda mais importante, se o governo, de maneira arbitrária, pode confiscar meus bens, qual é o valor do meu direito de propriedade? Sob o medo constante da expropriação, que esforço despenderei para melhorar minha propriedade? E que preço obterei por ela se resolver vendê-la?

Ao longo dos anos, tem sido impressionante ver os efeitos de até pequenas doses de propriedade privada. Quando a China concedeu formas altamente diluídas de propriedade aos residentes de áreas rurais que cultivavam lotes pertencentes à comunidade, a produtividade agrícola e os padrões de vida ostentaram aumentos substanciais. Estigma extremamente comprometedor para o planejamento central da União Soviética era o fato de grande parte de suas colheitas ser oriunda de terras privadas que representavam apenas pequena fração das terras agricultáveis.

Se a vida exige propriedades físicas – alimentos, roupas, moradias –, as pessoas precisam de proteção legal para usar e dispor de tais bens, sem a ameaça de confisco arbitrário pelo Estado ou pela turba nas ruas”[6].

 

Como dissemos enfaticamente, o instituto da propriedade privada não nasceu em nenhum agrupamento humano em particular, mas é um instrumento fundamental em toda nação que se desenvolveu. A propriedade privada assegurada gera previsibilidade nos sistemas jurídicos, não porque ela é um direito inerente à pessoa humana, mas porque é necessária para o desenvolvimento das economias. A experiência de estudiosos dos processos econômicos mostra o papel que a previsibilidade da justiça empresta no desenvolvimento das nações. Ela é essencial na existência de desenvolvimento com liberdade. O perigo está em tentar restringir o campo de alçada dos proprietários e, dessa forma, cercear a importante função que desempenha a propriedade privada da terra no desenvolvimento das economias.

 

Usando seus conhecimentos de ciência, o aclamado biólogo e ex-presidente da equivalente da Sociedade para o Progresso da Ciência do Oeste dos USA, Garret Hardin, escreveu um importante artigo intitulado “A Tragédia dos Comuns” no qual ele sugere a privatização dos mares como alternativa para transformar sua utilização de forma sustentável. A sugestão cita casos de privatização de bens públicos como forma de melhorar ou aprimorar sua sustentabilidade. O caso dos parques americanos é mostrado como um típico sucesso do uso da privatização como estratégia funcional. Quando um bem tem dono, a sociedade deixa de usá-lo como “lixeira geral”, como acontece atualmente com os oceanos e rios. Além disso, as terras não tituladas da Amazônia impedem os pretensos proprietários de usá-las, por exemplo, como garantias colaterais para acesso ao crédito, o que lhes permitiria comprar corretivos, fertilizantes e defensivos e cultivar com boas produtividades suas terras. Sem esta alternativa, só lhes resta utilizar o fogo como alternativa cultural para fertilizar com as cinzas suas plantações necessariamente nômades.

 

Finalmente, quando a Ministra da Agricultura do Brasil – Tereza Cristina – sugere a legalização da posse e titularidade das terras da Amazônia como forma de controlar o uso não sustentável de suas terras, ela não o faz por reconhecimento do direito natural das pessoas à posse da terra. Ela o faz porque a propriedade privada da terra cumpre a importante função social de preservar suas qualidades produtivas para que seus titulares possam continuar utilizando-as enquanto têm uma vida produtiva pela frente e deixando-as em boas condições de uso para seus descendentes. Deixar para as gerações futuras a mesma, ou melhor, quantidade e qualidade de recursos naturais que nossa geração encontrou é a melhor definição operacional de sustentabilidade que as sociedades modernas tanto valorizam.    

 


.

[1] Estamos usando o termo ciência para a área do conhecimento humano destinada a descrever o mundo como ele é, em oposição às áreas que objetivam normatizar as relações humanas, tais como as religiões, o Direito e os diferentes ismos ideológicos – socialismo, liberalismo, …etc – além das exotéricas. Estamos considerando científicos os conhecimentos que se enquadram no chamado método científico que, como definido por Karl Popper, envolve a resistência – ou não negação – do teste de suas hipóteses derivadas na continuidade da aceitação das teorias.  

[2] SORMAN, Guy. Os verdadeiros pensadores de nosso tempo. Tradução de Alexandre Cuasti. Rio de Janeiro: Imago, 1989

[3] Citado por PERES, F. C.. A função social do contrato empresarial revisitada: uma perspectiva interdisciplinar. In: Mario Luiz Delgado; Jones Figueirécio Alves. (Orgs.). Novo Código Civil: questões

controvertidas: direito de empresas. 1ed.São Paulo: Método, 2010, v. 8

 

[4],[5],[6] GREENSPAN, Alan. A era da turbulência: aventuras em um novo mundo. Tradução de Afonso Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 242-243

Compartilhe:

A SUSTENTABILIDADE DA AGRICULTURA DO CERRADO

A fronteira da agricultura brasileira encontra-se no cerrado! Com, praticamente, um quarto da área total do país, o cerrado é formado por solos dos mais antigos do mundo, sendo superados somente pelos australianos nesta característica. Desde a última glaciação ocorrida no nosso planeta, as calotas polares deslocaram-se a partir de latitudes muito altas no sentido dos trópicos, “cortando ou aplainando” as superfícies do globo em regiões temperadas. Estes aplainamentos criaram planícies que, do ponto de vista geológico, resultaram em solos mais novos e, portanto, mais férteis. Por serem mais novos, as intempéries – ação das chuvas, ventos e gelos – não os empobreceram por meio de processos que levam sua riqueza mineral para camadas mais profundas ou geograficamente distantes, longe do alcance das raízes das plantas utilizadas pela agricultura. Nestes solos mais ricos a agricultura temperada desenvolveu-se mais do que nas áreas tropicais do mundo ao longo dos séculos.

Nos solos das regiões tropicais, onde os únicos mais velhos que os do cerrado são os australianos, a natureza tratou, via ação das intempéries mencionadas, de destruir, levar para camadas profundas, ou lixiviar, os nutrientes. Estes elementos químicos podem ser solubilizados e tornados disponíveis para as plantas – das culturas alimentares, das pastagens, das plantas produtoras de fibras e celulose e das energéticas – e, por meio de reações físico-químicas, um verdadeiro milagre que é a fotossíntese, transformados em produtos nobres para o consumo da humanidade. Por serem muito antigos, os solos do cerrado são muito pobres já que em sua composição as intempéries atuaram, ao longo de milénios, deixando poucos nutrientes disponíveis para as plantas , tal como acontece na maioria das áreas centrais da Austrália.

A diferença da fertilidade natural entre os solos das regiões temperadas e os das tropicais levam alguns estudiosos a afirmar que nos tropicais, cerca de 90% da fertilidade está na sua parte aérea – plantas e munch (cobertura vegetal depositada na superfície) – enquanto nos solos temperados, 90% da fertilidade está retido nas partículas do solo. Assim, como a cobertura vegetal natural dos solos do cerrado é relativamente pobre, devido à alta incidência da luz solar e do longo período seco, sua fertilidade depende, fundamentalmente, da sua riqueza mineral. As argilas são os principais elementos físico-químicos que podem reter e ceder para a solução aproveitável pelas plantas os elementos primários que, via fotossíntese, produzem os açúcares, proteínas e gorduras usadas na alimentação humana e dos animais e das fibras e energias da biomassa.

Com altos teores de areia e, consequentemente, baixos teores de argila, a capacidade de retenção de bases e de água dos solos do Cerrado limita severamente sua capacidade produtiva.

Com argilas de baixa atividade, a baixa capacidade de retenção de nutrientes necessários ao desenvolvimento das plantas limita severamente a capacidade produtiva dos solos de Cerrado. Uma importante forma de melhorar este potencial produtivo pode ser conseguido com o aumento do teor de matéria orgânica naqueles solos, o que melhora a capacidade de retenção da água e dos químicos que compõem a solução dos nutrientes disponíveis para as raízes. As aulas do Professor Carlos Eduardo Pellegrini Cerri, disponíveis no youtube[1], mostram o enorme potencial do uso da matéria orgânica nos solos do Cerrado brasileiro. Além disso, os solos originais do Cerrado têm alto teor de alumínio toxico para as plantas. Desta forma, com o uso da calagem e/ou pela incorporação de gesso pode-se neutralizar o alumínio tóxico, permitindo o desenvolvimento de sistemas radiculares mais profundos e saudáveis. Portanto, tecnologias de manejo dos solos, tais como o cultivo mínimo e pela incorporação de matéria orgânica, pela correção da alta acidez que imobiliza o fósforo solúvel, principalmente com a calagem e uso do gesso  e com adubação mineral adequada, cuidando especialmente do micronutrientes não encontrados naqueles solos, os agricultores brasileiros estão ofertando à população do globo alimentos, fibras e energias renováveis fundamentais na sustentação dos mais de 7,5 bilhões de habitantes do planeta. A continuidade desta ocupação dos cerrados, com a agricultura tropical de alta tecnologia, será imprescindível na sustentação dos cerca de 10 bilhões de pessoas que povoarão a terra nos próximos 20 anos.

Como indicado por importantes estudiosos dos processos produtivos da agricultura tropical, a ocupação dos solos do Cerrado tem sido hostilizada por pessoas ou instituições que não compreendem sua característica de alta sustentabilidade ambiental. O fundador da revista Pesquisa Agropecuária Brasileira e estudioso pioneiro nas pesquisas que permitiram a produção do trigo no cerrado, Dr. Raul Ady da Silva, afirma que:

…”Mesmo áreas como as savanas (o Cerrado no Brasil), cujos solos foram degradados pelo meio ambiente, são objeto de campanha contra seu uso, apesar de sua ocupação corrigir o que a natureza degradou, melhorando o meio ambiente em proveito da humanidade”… (da Silva, 2006, pg. 493)

Além das importantes contribuições daquele autor, outros estudiosos têm afirmado o efeito degradante da própria natureza sobre o cerrado do país:

… “A escassez de elementos químicos nos solos de Cerrado foi originada, em grande parte, pelo meio ambiente, durante milhões de anos, causando transformações químicas e lixiviação, tornando-os limitados para sustentar vegetação exuberante. Portanto, foram degradados não por ação do homem que, apoiado na tecnologia definida pela experimentação e pesquisa, tem transformado esse ecossistema em áreas agrícolas altamente produtivas”. (Spehar, 2006, pg. 200)

Desta forma, a fronteira da exitosa agricultura tropical do Brasil está sendo manejada de maneira altamente sustentável. Os agricultores brasileiros estão legando às nossas futuras gerações um acervo de recursos – naturais modificados – muito superiores aos que eles encontraram ou herdaram da natureza. De fato, deixar para as futuras gerações que habitarão o planeta uma disposição de recursos naturais, pelo menos, iguais ou maiores aos que nós encontramos é a melhor definição de sustentabilidade ambiental que se conhece!

Finalmente, um importante aspecto da sustentabilidade dos diferentes biomas do Cerrado brasileiro, bem como de todos os outros biomas do país, está ligado à manutenção da biodiversidade genética de sua flora e fauna, inclusive da que vive dentro do próprio solo. O Código Florestal do Brasil é inigualável em todo o mundo em sua garantia de preservação desta biodiversidade natural, quando exige a manutenção de reservas em cada propriedade rural de, pelo menos, 20% de seus solos cobertos com vegetação nativa, que somente pode ser manejada de forma a assegurar a manutenção daquela biodiversidade. Este é um ônus pago pelos próprios agricultores brasileiros e que só recentemente tem sido reconhecido por instituições econômicas, políticas e sociais do mundo. A agricultura tropical do Brasil, um exemplo do êxito no uso da ciência no desenho dos processos tecnológicos de que se utiliza, mostra que nossos empresários rurais responderam, da maneira mais sustentável que se conhece, o desafio social de fornecer à população mundial alimentos, fibras e energia renovável das quais necessita.  

Bibliografia citada.

da Silva, Ady Raul. “Restrições à Aplicação dos Resultados da Pesquisa na Agricultura Tropical” in Paterniani, Ernesto (Editor Técnico). Ciência, Agricultura e Sociedade. Brasília, DF: Embrapa Informação Tecnológica, 2006.

Spehar, Carlos Roberto. “Conquista do Cerrado e Consolidação da Agropecuária”. in Paterniani, Ernesto (Editor Técnico). Ciência, Agricultura e Sociedade. Brasília, DF: Embrapa Informação Tecnológica, 2006.

Cerri, Carlos Eduardo P. “Palestra sobre Manejo Adequado da Matéria Orgânica dos Solos” em https://www.youtube.com/watch?v=CkCzj8pqTxo e as correspondentes respostas https://www.youtube.com/watch?v=f4Ux-IAStfc com acesso em 09/12/2020.

[1]Cerri, Carlos Eduardo P. “Palestra sobre Manejo Adequado da Matéria Orgânica dos Solos” em https://www.youtube.com/watch?v=CkCzj8pqTxo e as correspondentes respostas https://www.youtube.com/watch?v=f4Ux-IAStfc com acesso em 09/12/2020.

 

 

Compartilhe:

A RELEVÂNCIA DA DICOTOMIA ESQUERDA DIREITA

No Brasil os termos esquerda e direita têm sido mal utilizados por diversas razões. O cientista político Bolivar Lamounier inclui, entre elas, até a superficialidade do conhecimento de alguns grupos ideológicos. Quaisquer que sejam as causas do mal uso da dicotomia, é bom que fique um pouco mais claro o que os conceitos significam atualmente. Lembrando o inesquecível Paulo Francis, quando dizia que ‘o Brasil era o único país do mundo onde as esquerdas ainda levavam o comunismo a sério’, é possível indicar algumas características comuns à maioria dos pensamentos de grupos denominados de esquerda. Estamos falando de indivíduos sérios, no sentido de acreditarem em um conjunto de princípios e regras de ações públicas que julgam que melhoraria a vida dos grupos sociais que os adotassem. Da mesma forma, as crenças em um conjunto de princípios e valores alternativos valem para os grupos denominados de liberais, termo aqui usado porque o conceito de “direita” foi politicamente deturpado à ponto de, praticamente, inviabilizar seu uso sem associações pejorativas.

Algumas características são comuns aos pensamentos do grupos autodenominados de esquerdistas:

(i) acreditam que as organizações de governos devem ter um papel preponderante tanto na indicação quanto na alocação econômica dos recursos primários da sociedade – recursos humanos, físicos, financeiros e naturais – e, acima de tudo, que

(ii) as pessoas devem, ou precisam, delegar a um(alguns) sub-grupo(s) da sociedade, especialmente a um ou alguns partidos e de forma mais ou menos definitiva, o direito de escolher e implementar as ações públicas que julgam melhor para a sociedade.

Os liberais, por seu lado, acreditam que as escolhas sociais e políticas devem ser feitas por todos os indivíduos que compõem as populações, tanto por delegação representativa por prazo determinado, por meio do voto livre e universal, e que a melhor alocação dos recursos primários da sociedade deve ser feita pela iniciativa privada e que o principal papel dos governos é garantir a propriedade e a igualdade das condições competitivas entre os indivíduos. O critério fundamental deve ser a meritocracia, desde que assegurada a condição competitiva entre as alternativas de desenho e ações políticas. É claro que os processos de escolha sociais são mais caros e mais demorados em geral em situações não autocráticas, mas a livre discussão, entre as visões alternativas, é vista como mais que compensadora na produção de soluções aceitáveis pelas sociedades. O constante debate entre as duas visões alternativas – a liberal e a esquerdista – tende a gerar soluções superiores quando feitas em regimes verdadeiramente democráticos.

Com as dificuldades de controle pela população dos atos e ações de políticos eleitos, está havendo, em muitas partes do mundo, um enorme distanciamento entre os políticos e as populações que os elegeram. Onde existe o voto distrital e é assegurado a igualdade entre um eleitor e um voto (em outras palavras, os distritos eleitorais têm o mesmo número de eleitores em todo o pais, ao contrário do que ocorre no Brasil) a experiência tem mostrado uma maior legitimidade dos processos eleitorais e os eleitores podem exercer controles mais efetivos sobre as ações de seus eleitos. No nosso país, estamos longe de termos processos que aproximem os eleitores dos eleitos. De fato, os políticos fazem todo o possível para não precisar prestar conta de seus atos e ações aos eleitores. Os famosos fundos eleitorais distribuídos aos partidos garantem aos políticos as chances de serem eleitos recorrendo somente a instrumentos de mídias e a “marketeiros”, sem terem que prestar contas aos eleitores.

Como a experiência mostrou ao mundo que a alocação de recursos primários produz resultados muito superiores quando feita pela iniciativa privada do que por escritórios públicos burocratizados, a forma capitalista – ou de mercado – de produção de bens e serviços tornou-se, praticamente, hegemônica[1] em todos os continentes. Desta forma, as esquerdas estão se apegando mais ao controle político dos respectivos regimes admitindo, de fato, que a forma capitalista de produção de bens e serviços é superior na produção de riquezas. Novamente, nossa experiência é pobre, também, em permitir que a alocação dos recursos produtivos da sociedade seja feita segundo o ideal liberal da competição baseada na meritocracia econômica. Nossa história recente de escolha dos chamados “campeões nacionais” pelo governo, gerou inúmeras perdas sociais de qualidade de vida – causadas pela corrupção e ineficiências produtivas – para a sofrida população brasileira.

Por fim, o debate parlamentar e acadêmico entre as visões liberais e de esquerda tendem a produzir soluções positivas para a sociedade, desde que feito em ambientes de legítima representatividade democrática sob o controle, o mais direto possível, dos eleitores. Este debate entre visões alternativas é fundamental para a superação da profunda chaga que a desigualdade entre classes impõe ao corpo social brasileiro. Como indicado por Roberto da Matta em artigo recentemente publicado:  

Não é mais possível manter um inferno jurídico para os pobres e os comuns e um purgatório de regalias para os que estavam (e continuam estando) acima da lei. A luta hoje é como controlar o purgatório jurídico fiador da desigualdade[2].

O parlamento brasileiro precisa se depurar em sua representatividade para produzir um arcabouço legal que melhore as condições de vida de toda a população e não permita a manutenção de perversos privilégios que subgrupos que têm se apoderado dos governos insistem em continuar viabilizando.

 

[1] As notáveis exceções são Cuba, Coreia do Norte e Venezuela, países que estão, literalmente, em situações de penúria econômica, com as consequentes baixas qualidade de vida de suas populações.

[2] Roberto DaMatta, “Acabar com a Esquerda”? O Estado de São Paulo, 09 de setembro de 2020

Compartilhe:

A DISTRIBUIÇÃO DA RENDA E O CONSUMO DE ALIMENTOS.

Desde a década dos trinta do século passado, muitas políticas públicas do Brasil foram orientadas no sentido de estimular a migração das pessoas do campo para as áreas urbanas – urbanização – e para a extração de recursos monetários do campo para financiar a construção de um forte parque industrial no país – industrialização. Desde então, se difundiu na sociedade brasileira o conceito econômico-político-social segundo o qual só a transformação do Brasil de uma sociedade agrária em uma sociedade urbanizada e industrializada asseguraria a modernização e o desenvolvimento do país[1]. O processo de extração dos recursos humanos e financeiros do campo para financiar a urbanização e industrialização do país foi consistentemente conduzido por diferentes governos até o final da década dos anos setenta quando o processo teve que ser interrompido. Depois de muitas décadas de penalização, a performance da maior parte das unidades produtivas da agricultura estava muito ruim e com rendas muito baixas.

As duas principais políticas desenhadas para evitar o desabastecimento resultante da baixa performance da agricultura – preços mínimos e créditos subsidiados – acabaram por dicotomizar o setor, criando um pequeno grupo de empresários rurais eficientes e mais capitalizados e deixando um enorme contingente de produtores com baixos estoques de capitais empresariais na agricultura de sobrevivência. Some-se a este contingente de famílias pobres, a enorme fração da população em geral que foi penalizada pelo uso exaustivo da política de taxação inflacionária, fortemente utilizada no período e nos quinze anos seguintes, até 1994, com a implantação do Plano Real. A taxação inflacionária é, e foi, extremamente perversa porque promove(eu) enorme concentração de renda na população. As camadas de renda mais alta tem alternativas de aplicações e usos de suas rendas, de forma a manter e/ou fazer crescer seus valores, enquanto os pobres vêm seus parcos recursos serem comidos pelas perdas dos valores de compra da moeda. Desta forma, o país experimentou uma enorme concentração das rendas auferidas pelas diferentes camadas da população.

Enquanto os processos descritos como dos tempos de concentração das rendas duraram 65 anos, desde 1930, o país experimentou poucas iniciativas de políticas públicas destinadas a reduzir o enorme diferencial das rendas auferidas resultantes entre as diferentes camadas da população. Três políticas merecem, a nosso ver, destaque no processo inverso de descontração das rendas: (i) a criação e implantação efetiva dos benefícios do Funrural, iniciados em 1973 e expandidos em 1988; (ii) o controle do processo inflacionário da economia, iniciado em 1994; e (iii) a criação do sistema de bolsas para famílias pobres, criada inicialmente como bolsa educação[2], em Campinas, SP, tornado nacional no governo FHC e fortemente expandido nos governos Lula-Dilma.

A partir de1973, após 40 anos de discriminação contra os trabalhadores do campo[3], alguns benefícios da seguridade social – ½ salário mínimo de aposentadoria e acesso a serviço de saúde – foram, finalmente, estendidos à população rural do país. A discriminação foi reduzida com a correção das aposentadorias rurais para 1(um) salário mínimo, garantidos pela Constituição de 1988. Os impactos da implementação destas políticas de seguridade social no campo foram enormes, uma vez que permitiram às famílias monoparentais[4] mudarem-se, ou retornarem, para a casa de seus pais aposentados, desfrutando, consequentemente, de um mínimo de renda monetária. Os dados mostram uma significativa redução nos índices de mortalidade infantil nas áreas rurais assoladas por problemas de secas recorrentes.

O controle do processo inflacionário iniciado em 1994 foi, provavelmente, a principal política de desconcentração da renda da população brasileira. Por longos períodos, os sucessivos governos ofereciam privilégios para determinadas camadas da população e mandavam a conta para os pobres pagarem na forma de taxação inflacionária. A taxação inflacionária é a mais regressivas das formas de taxação; os pobres são as suas principais vítimas. A maior perversidade do processo ocorreu dos anos 1930 até 1988; neste período, a conta das políticas públicas discricionárias – que favoreciam determinadas classes populacionais, especialmente as do funcionalismo público – eram mandadas para os pobres pagarem, via inflação, e a estes mesmos pobres era negado o direito de manifestarem politicamente, pelo voto, sua insatisfação. Com a diminuição deste processo iníquo de taxação inflacionária, as populações mais pobres do país tiveram uma elevação sensível nos seus níveis de renda real refletidos no grande aumento pela procura por alimentos, especialmente de carnes e derivados de leite, logo após 1995.

 Desde a criação e expansão dos programas de transferência direta de renda para famílias pobres, uma parte importante da procura por alimentos da chamada cesta básica das famílias de mais baixa renda tem sido mantida devido a estas políticas. Ela ficou evidente com o aumento na procura por itens alimentares que garantiram o consumo daquelas famílias no período altamente recessivo que se seguiu à disseminação no Brasil do Covid-19. Apesar da queda acentuada no ritmo de crescimento da economia do país, a procura doméstica por alimentos manteve-se firme, suportando, inclusive os aumentos associados ao alinhamento dos preços internos aos internacionais. Infelizmente, existem limites que a economia consegue suportar para a manutenção e/ou crescimento no volume destas transferências. Decisões políticas de difícil escolha e implantação terão que ser tomadas pela sociedade brasileira.  

 

[1] O processo está descrito em PERES, Fernando C. “A Propriedade Familiar e a Pesquisa Agropecuária”, pgs. 415-438, In PATERNIANI, Ernesto (Ed.Técnico) Ciência, Agricultura e Sociedade. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, 2006.

[2] Governo municipal de Jose Roberto Magalhães Teixeira.

[3] O IAP – Instituto de Aposentadoria e Pensão – IAPM (dos marítimos, criado em 1933), foi o primeiro de uma série de 16 IAPs – IAPC (comerciários), IAPI (industriários), IAPB (bancários), etc – criados por Getúlio Vargas,  ofereciam aos trabalhadores urbanos da economia os benefícios de aposentadoria, assistência de saúde e assistência habitacional. Só 40 anos depois os benefícios da previdência social foram parcialmente estendidos aos trabalhadores rurais do país.

[4] Famílias de regiões pobres formadas, em geral, pela mãe e filhos, uma vez que os pais deixam o campo e migram para áreas urbanas à procura de melhores rendas. O padrão indica que inicialmente ele envia parte das suas rendas para a família deixada no campo, mas, com o passar do tempo, tende a constituir nova família e abandona a mãe com os filhos.

Compartilhe:

O CAMINHO QUE ESCOLHEMOS

Em artigo recente que reflete a visão de um dos mais brilhantes economistas do país – Affonso Celso Pastore – ele discute as políticas dos Estados Unidos, da Europa e do Brasil no enfrentamento da crise econômica e sanitária causada pelo Covid-19. O artigo, publicado no O Estado de São Paulo, aponta o fato de termos seguido as orientações políticas americanas, ao contrário das europeias, e termina com o curto parágrafo que reproduzimos com breve enxerto nosso, colocado entre […]:

“Uma proeza, maximizamos os dois custos [ele se refere ao (i) custo fiscal do aumento da relação Dívida/PIB e (ii) a criação de uma bolha no mercado de ações] ao adotar um modelo que busca, apenas, viabilizar a reeleição do presidente. Melhor seria termos aprendido com a história dos países de sucesso, que priorizam o bem comum, como fizeram os europeus”. (Estadão, 30/08/2020)

Os governos executivos federais dos USA e do Brasil estão, atualmente, ocupados por populistas que souberam se aproveitar de conjunturas específicas nos seus respectivos países – a redução relativa da qualidade de vida de uma classe média despreparada, em sua competência, para a concorrência derivada da globalização das economias, nos USA, e o perigo da permanência no poder executivo de um partido altamente corrupto, no Brasil, – e têm declarado suas afinidades políticas. Por que os dois países têm governos populistas, apesar de serem profundamente diferentes em suas organizações políticas e no grau de educação de suas populações?

A baixa competência do capital humano brasileiro – conhecimento, habilidade, que é a capacidade de transformar o conhecimento em trabalho e atitude – tem sido mensurada em inúmeras pesquisas comparativas entre países. Além da baixa competência, as rendas da população e o arcabouço legal e institucional brasileiro aumentam a insegurança das pessoas no respeito às suas liberdades constitutivas e as instrumentais. A escala das hierarquias de Maslow, mostrada na chamada Pirâmide de Maslow, ajuda a entender as limitações de nossa população na sua compreensão e atuação política. Aquele famoso psicólogo sugeriu a divisão das necessidades humanas em cinco classes de acordo com as preferências de satisfação de cada classe. Como mostrado na figura, à classe mais primária, ou elementar, de necessidades ele denomina de fisiológica. Nela estão as necessidades de comida, respiração, sexo, etc, que precisam ser, pelo menos parcialmente, satisfeitas para que a classe seguinte – segurança – ocupe o espaço das preocupações dos indivíduos. De maneira semelhante, as três classes mais altas só se transformam em necessidades efetivas se as mais baixas – que estão em classes inferiores na pirâmide – são, pelo menos, parcialmente satisfeitas.

Como pode ser visto na Pirâmide de Maslow, preocupações e envolvimento em ações corretoras sobre corrupção pública e legitimidade de representação política serão dificilmente priorizadas por uma vasta faixa da população brasileira que se encontra, por sua baixa renda e pouco conhecimento formal, em classes que correspondem às mais baixas da hierarquia sugerida por Maslow. Isto os transforma em público preferencial para responder a apelos de populistas. Por isto, também, o aprimoramento da educação brasileira dificilmente tem sido considerado prioritário pela maioria de nossos políticos.

 

Os USA têm uma invejável organização política, com excelente representatividade popular, assegurada pelo sistema de voto distrital com recall e pela realização de eleições bianuais para sua Câmara de Deputados e parte do Senado e incontáveis consultas diretas nas eleições, às populações, na implementação de políticas públicas. Este sistema garante o controle, pela população, de muitas ações e decisões políticas. No entanto, também naquele país, as chefias dos executivos, tanto a federal quanto as estaduais, são mais difíceis de serem controladas pela população, pelo fato dos constituintes estarem muito mais dispersos e em grandes populações. As estratégias de marketing e de uso de instrumentos de mídia têm um papel predominante nas escolhas dos seus titulares, o que facilita a eleição de populistas bem assessorados – pelos famosos marketeiros – no uso daqueles recursos de comunicação. Este fato está acontecendo em muitas outras partes do mundo desvirtuando a representatividade de sistemas presidencialistas, como o americano. A sorte deles vem do fato de que lá – nos USA – o congresso eleito com maior representatividade pode realmente controlar, ou, às vezes, impedir o chefe do executivo de causar tantos malefícios à nação.

No Brasil, o sistema de representação política é precário em todos os níveis. Tanto as Câmaras de Deputados quanto o Senado Nacional têm seus ocupantes eleitos em grandes pleitos onde é altamente diluída a interação mais próxima da população com os eleitos. De fato, o controle das ações dos eleitos pelos eleitores é sistemática e constantemente dificultado pela organização do nosso sistema eleitoral. O resultado é que poucos se lembram em que partido e, mesmo, em que candidato votou na última eleição para as câmaras de deputados. O pior é que mesmo aquele que se lembra do nome do candidato em quem votou acabou elegendo terceiros sobre os quais sabe muito pouco. Como insiste o importante jornalista e estudioso de ciência política, Fernão Lara Mesquita, só o aperfeiçoamento do processo eleitoral brasileiro com a incorporação do voto distrital pode melhorar o controle pela população das ações dos políticos. Embora tardiamente, até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso[1] acabou por admitir que a introdução de alguma forma de voto distrital é fundamental para o aperfeiçoamento de nossos processos democráticos. Só assim, teremos alguma chance de nossos políticos priorizarem o bem comum em suas ações.     

 

[1] Fernando H. Cardoso. “Reeleição e Crises”. O Estado de São Paulo. 06/09/2020

Compartilhe:

BRASIL: TERRAS CONSTITUCIONALMENTE IMPRODUTIVAS?

O desconhecimento por parte da maioria dos legisladores brasileiros que elaborou a Constituição de 1988 e, principalmente, que aprovou o Código Civil de 2002, permitiu a ocorrência de problemas que têm custado muitas ineficiências à nossa agricultura, causando prejuízos ao funcionamento harmônico da sociedade e, consequentemente, à capacidade de consumo da população do país. Trata-se da introdução, naqueles documentos legais, dos conceitos de função social da propriedade (da terra), em particular, e da função social dos contratos, em geral. Embora o problema seja menor no caso da Constituição Federal, uma vez que ela explicita o que deve ser entendido como as condições que caracterizam o descumprimento da função social da propriedade rural, as suas cláusulas abertas[1], principalmente as do Código Civil, do que seria o cumprimento da função social dos contratos, têm trazido muita insegurança jurídica, tanto à agricultura, quanto aos demais setores da economia.

Constitucionalmente, o não cumprimento da função social da propriedade pode acarretar, entre outras penalidades impostas ao proprietário, sua desapropriação para fins de reforma agrária. A Carta Magna define o não cumprimento da função social da propriedade rural quando, em seu uso, pode ser observada uma ou mais das seguintes condições: (i) a utilização dos seus recursos naturais com o uso de processos que não preservam adequadamente o meio ambiente; (ii) a não observância da legislação trabalhista nas relações de produção da propriedade com seus recursos humanos; e (iii) a não utilização mínima do potencial produtivo das terras da propriedade. Esta última condição, diretamente relacionada à produtividade das áreas foi a principal justificativa para a maior parte das desapropriações ocorridas desde meados dos anos noventa do Século XX, período em que foram fortemente expandidas as ações de desapropriação e de assentamentos rurais, também chamadas de ações de Reforma Agrária.

Com exceção do estímulo ao uso de processos adequados de preservação dos recursos naturais, as duas outras exigências para cumprimento constitucional da função social da propriedade – utilização mínima do potencial produtivo da terra e adequação às normas da legislação trabalhista – causam, possivelmente, mais malefícios que benefícios à sociedade brasileira. As exigências da legislação trabalhista causam mais conflitos do que servem para harmonizar as relações de trabalho na agricultura. Baseada na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, a nossa legislação trabalhista sempre ignorou as exigências específicas das condições de produção na agricultura, especialmente as necessidades de horários, deslocamentos e concentração temporal de horas trabalhadas. Dificilmente as normas pensadas para as atividades de trabalho em escritórios, chão de fábrica e comércio nas cidades podem e devem ser utilizadas em culturas ou atividades realizadas a céu aberto e sujeitas a intempéries que variam com as estações do ano. Apenas recentemente algumas normas trabalhistas da antiga CLT foram objeto de aprimoramentos e, consequentemente, têm diminuído as tensões entre o capital e o trabalho no agro e na sociedade.

O problema relacionado à definição do que seria o uso mínimo adequado dos recursos naturais de uma propriedade se encontra na adoção, quase sempre, do critério de utilização média da terra. Quando são fixados os índices mínimos de utilização da terra, como, por exemplo, o número mínimo de suporte de unidades animais (UAs) por ha de pastagem, a produtividade mínima das lavouras, ou outros critérios similares, os técnicos responsáveis pela fixação dos valores limites tendem a utilizar parâmetros médios regionais como valores exigíveis para sua consideração como adequados. Esta forma de fixação de uso mínimo da terra, como condição constitucional para definir a propriedade como produtiva leva, se correta e recorrentemente aplicada, a considerar todas as propriedades como improdutivas.

Um exemplo pode ajudar no entendimento de como o uso de valores médios nos cálculos dos requerimentos mínimos de utilização das terras implica sérias distorções nos objetivos da política. Considere-se, por exemplo, o caso da pecuária de corte, uma das atividades mais visadas pelos defensores das desapropriações. Neste caso, a mensuração da utilização adequada da terra é feita com o auxílio do conceito de uma unidade animal (UA), definida como a capacidade de suporte de equivalentes aos requerimentos de pastagem de uma vaca com peso de 450 kg. Usando o conceito, uma novilha de dois anos é equivalente a 0,65 UA, que equivale ao consumo de um animal com menor peso e menos exigências nutricionais que deverão ser fornecidas pelas pastagens. Pela conversão de todos os animais aos seus equivalentes UAs pode-se estimar o grau de uso das pastagens de uma propriedade. Como o uso de valores médios leva ao problema mencionado?

Para cada uma das mais de 500 sub-regiões produtivas em que o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – divide o país, os técnicos do INCRA calculam valores mínimos em UA/ha que as propriedades devem apresentar para serem consideradas produtivas. Como mencionado, o problema surge quando utilizam valores médios regionais para estabelecer os valores mínimos exigidos[2]. À época do estabelecimento dos últimos valores limites, isto levou o Sr. Raul Jungman, então Ministro do Desenvolvimento Agrário do Brasil, a anunciar pelas TVs que o INCRA tinha encontrado um índice de 50% de sub-utilização das terras de pastagens no Brasil. De fato, a única coisa que ele anunciou foi que seus técnicos não tinham errado nas contas que resultaram naquele índice. Quando se usam valores médios regionais, no agregado resultante de grandes números de regiões, o resultado tinha, tautologicamente, que indicar 50% de propriedades improdutivas[3]. Se as improdutivas fossem desapropriadas e, mais uma vez, o critério fosse utilizado nas propriedades restantes, ele, novamente, indicaria que 50% eram improdutivas e o processo continuaria até que todas as propriedades fossem assim classificadas. Fica para o leitor o exercício de explicar como a agricultura tropical mais eficiente do mundo tem todas suas terras subutilizadas segundo o critério constitucional do país, como definido pelo INCRA!

 

[1] Cláusulas não claramente definidas nos textos legais e deixadas, portanto, a ter sua conceitualização e utilização prática aberta a visões alternativas dos aplicadores do Direito.

[2] O leitor deve notar que dificilmente os técnicos de uma região terão condições de fixar valores muito diferentes dos valores médios locais porque, além da capacidade de lotação das pastagens indicadas em experimentos agronômicos, valores monetários e inúmeros outros custos e preços dos produtos entram no cálculo dos valores econômicos relevantes. Por isso, os técnicos tendem a fixar os valores mínimos do índice em parâmetros próximos aos médios observados localmente.

[3] Se o número de regiões é grande, um teorema da Estatística – Teorema do Limite Central – indica que independentemente das distribuições probabilísticas regionais, a distribuição estatística do agregado tende para a normalidade, com média igual à mediana. Como a mediana divide o espaço em duas partes iguais, 50% das observações estarão, necessariamente, abaixo da média.

Compartilhe: