A DISTRIBUIÇÃO DA RENDA E O CONSUMO DE ALIMENTOS.

4.4
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Desde a década dos trinta do século passado, muitas políticas públicas do Brasil foram orientadas no sentido de estimular a migração das pessoas do campo para as áreas urbanas – urbanização – e para a extração de recursos monetários do campo para financiar a construção de um forte parque industrial no país – industrialização. Desde então, se difundiu na sociedade brasileira o conceito econômico-político-social segundo o qual só a transformação do Brasil de uma sociedade agrária em uma sociedade urbanizada e industrializada asseguraria a modernização e o desenvolvimento do país[1]. O processo de extração dos recursos humanos e financeiros do campo para financiar a urbanização e industrialização do país foi consistentemente conduzido por diferentes governos até o final da década dos anos setenta quando o processo teve que ser interrompido. Depois de muitas décadas de penalização, a performance da maior parte das unidades produtivas da agricultura estava muito ruim e com rendas muito baixas.

As duas principais políticas desenhadas para evitar o desabastecimento resultante da baixa performance da agricultura – preços mínimos e créditos subsidiados – acabaram por dicotomizar o setor, criando um pequeno grupo de empresários rurais eficientes e mais capitalizados e deixando um enorme contingente de produtores com baixos estoques de capitais empresariais na agricultura de sobrevivência. Some-se a este contingente de famílias pobres, a enorme fração da população em geral que foi penalizada pelo uso exaustivo da política de taxação inflacionária, fortemente utilizada no período e nos quinze anos seguintes, até 1994, com a implantação do Plano Real. A taxação inflacionária é, e foi, extremamente perversa porque promove(eu) enorme concentração de renda na população. As camadas de renda mais alta tem alternativas de aplicações e usos de suas rendas, de forma a manter e/ou fazer crescer seus valores, enquanto os pobres vêm seus parcos recursos serem comidos pelas perdas dos valores de compra da moeda. Desta forma, o país experimentou uma enorme concentração das rendas auferidas pelas diferentes camadas da população.

Enquanto os processos descritos como dos tempos de concentração das rendas duraram 65 anos, desde 1930, o país experimentou poucas iniciativas de políticas públicas destinadas a reduzir o enorme diferencial das rendas auferidas resultantes entre as diferentes camadas da população. Três políticas merecem, a nosso ver, destaque no processo inverso de descontração das rendas: (i) a criação e implantação efetiva dos benefícios do Funrural, iniciados em 1973 e expandidos em 1988; (ii) o controle do processo inflacionário da economia, iniciado em 1994; e (iii) a criação do sistema de bolsas para famílias pobres, criada inicialmente como bolsa educação[2], em Campinas, SP, tornado nacional no governo FHC e fortemente expandido nos governos Lula-Dilma.

A partir de1973, após 40 anos de discriminação contra os trabalhadores do campo[3], alguns benefícios da seguridade social – ½ salário mínimo de aposentadoria e acesso a serviço de saúde – foram, finalmente, estendidos à população rural do país. A discriminação foi reduzida com a correção das aposentadorias rurais para 1(um) salário mínimo, garantidos pela Constituição de 1988. Os impactos da implementação destas políticas de seguridade social no campo foram enormes, uma vez que permitiram às famílias monoparentais[4] mudarem-se, ou retornarem, para a casa de seus pais aposentados, desfrutando, consequentemente, de um mínimo de renda monetária. Os dados mostram uma significativa redução nos índices de mortalidade infantil nas áreas rurais assoladas por problemas de secas recorrentes.

O controle do processo inflacionário iniciado em 1994 foi, provavelmente, a principal política de desconcentração da renda da população brasileira. Por longos períodos, os sucessivos governos ofereciam privilégios para determinadas camadas da população e mandavam a conta para os pobres pagarem na forma de taxação inflacionária. A taxação inflacionária é a mais regressivas das formas de taxação; os pobres são as suas principais vítimas. A maior perversidade do processo ocorreu dos anos 1930 até 1988; neste período, a conta das políticas públicas discricionárias – que favoreciam determinadas classes populacionais, especialmente as do funcionalismo público – eram mandadas para os pobres pagarem, via inflação, e a estes mesmos pobres era negado o direito de manifestarem politicamente, pelo voto, sua insatisfação. Com a diminuição deste processo iníquo de taxação inflacionária, as populações mais pobres do país tiveram uma elevação sensível nos seus níveis de renda real refletidos no grande aumento pela procura por alimentos, especialmente de carnes e derivados de leite, logo após 1995.

 Desde a criação e expansão dos programas de transferência direta de renda para famílias pobres, uma parte importante da procura por alimentos da chamada cesta básica das famílias de mais baixa renda tem sido mantida devido a estas políticas. Ela ficou evidente com o aumento na procura por itens alimentares que garantiram o consumo daquelas famílias no período altamente recessivo que se seguiu à disseminação no Brasil do Covid-19. Apesar da queda acentuada no ritmo de crescimento da economia do país, a procura doméstica por alimentos manteve-se firme, suportando, inclusive os aumentos associados ao alinhamento dos preços internos aos internacionais. Infelizmente, existem limites que a economia consegue suportar para a manutenção e/ou crescimento no volume destas transferências. Decisões políticas de difícil escolha e implantação terão que ser tomadas pela sociedade brasileira.  

 

[1] O processo está descrito em PERES, Fernando C. “A Propriedade Familiar e a Pesquisa Agropecuária”, pgs. 415-438, In PATERNIANI, Ernesto (Ed.Técnico) Ciência, Agricultura e Sociedade. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, 2006.

[2] Governo municipal de Jose Roberto Magalhães Teixeira.

[3] O IAP – Instituto de Aposentadoria e Pensão – IAPM (dos marítimos, criado em 1933), foi o primeiro de uma série de 16 IAPs – IAPC (comerciários), IAPI (industriários), IAPB (bancários), etc – criados por Getúlio Vargas,  ofereciam aos trabalhadores urbanos da economia os benefícios de aposentadoria, assistência de saúde e assistência habitacional. Só 40 anos depois os benefícios da previdência social foram parcialmente estendidos aos trabalhadores rurais do país.

[4] Famílias de regiões pobres formadas, em geral, pela mãe e filhos, uma vez que os pais deixam o campo e migram para áreas urbanas à procura de melhores rendas. O padrão indica que inicialmente ele envia parte das suas rendas para a família deixada no campo, mas, com o passar do tempo, tende a constituir nova família e abandona a mãe com os filhos.

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