I. Introdução: como podemos estudar o conhecimento humano e algumas de suas implicações.
Muitos profissionais e mesmo estudiosos de determinadas disciplinas ditas científicas e as de outras áreas do conhecimento – artes, religiões, éticas e de escolhas morais, ideológicas ou de opções políticas, de história e de outras formas – usam, em publicações, argumentações, discussões e em manifestações diversas, de forma mais ou menos indiscriminadas, elementos de mais de uma delas, sem precisar suas limitações metodológicas ou pressuposições básicas. Por má fé, ignorância ou falta displicente da devida atenção, o uso indevido dos métodos de análise ou limitações associadas aos conhecimentos derivados das diferentes formas analíticas apontadas acima, os indivíduos são levados a sofismar. O sofista se utiliza de resultados derivados das diferentes áreas do conhecimento sem distingui-los no sentido de suas limitações nas diversas formas de argumentação ou proposição. Quando são utilizados ou propostos com má fé, o acatamento da(s) proposição(ões) resultante(s) de sofismas pode levar a perdas sociais no sentido de infligir em outro(s) solução(ões) inconveniente(s). O presente artigo é uma introdução ao estudo das formas, ou tipos, de conhecimento humano, com a clara intensão de ajudar o leitor a fugir do uso de sofismas em suas argumentações e levá-lo a refletir sobre o papel do conhecimento científico no contexto atual.
Estudar as diferentes formas do conhecimento humano é o campo da Epistemologia. Esta pode ter a conotação de conhecimento, no sentido que associamos a conhecer uma pessoa mais intimamente ou a conhecer, saber e ter certa familiaridade com um processo, ou método qualquer, além de também incluir o conhecimento de linguagens de algum dos diferentes ramos das ciências e/ou saber utilizar o processo lógico utilizado nas respectivas demonstrações ou análises. Algumas angústias são identificadas no comportamento humano sobre as quais, infelizmente, não conhecemos a origem, ou razão de ser. Luc Ferry, um brilhante filósofo contemporâneo e ex-Ministro da Educação da França, sugere em seu interessante livro introdutório, ou motivacional, para o, ou do, estudo da Filosofia, que a angústia do tipo primária, impulsiva ou genética das pessoas, no sentido de elas não se conformarem com o caráter passageiro, temporário ou não eterno de nossos sentimentos de felicidade – opinião comungada pela maioria dos humanos, mostrado no provérbio Inglês segundo o qual “all that is good must come to an end” (tudo que é bom acaba!), e no verso da brasileiríssima canção “Tristeza não tem fim, felicidade sim; a felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor, brilha tranquila depois de leve oscila e cai como uma lágrima de amor” – , causa uma profunda necessidade dos indivíduos encontrarem soluções mais ou menos lógicas, promessas ou evidências de que algum tipo de felicidade eterna seja possível, pelo menos para alguns.
Um importante filósofo do século passado, Bertrand Russel, matemático, epistemologista e físico do mais alto nível, nascido nos anos setenta do Século XIX, e altamente produtivo desde o final daquele século até meados da segunda metade do Século XX, considera como um dos problemas mais fundamentais da filosofia as dificuldades envolvidas com a demonstração da existência objetiva das coisas, dos fatos, situações ou eventos observados ou percebidos por nossos sentidos. Esta controvérsia, como sugerida por Russel, tem raízes profundas no problema do conhecimento humano.
Desde o famoso “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo; ou Penso, logo sou), uma frase de autoria do filósofo e matemático francês René Descartes, tido como um dos principais pensadores que lançaram as bases do que é hoje aceito como o método universal das ciências, vê-se que o problema da existência objetiva do que é percebido por nossos sentidos ainda não foi resolvido. De fato, estudando as imensas possibilidades de interferências na nossa percepção dos fatos do mundo físico ou virtual, a única certeza que temos, ou podemos ter, sobre a realidade objetiva deles é de que algo está estimulando nosso pensamento! Reconhecendo a limitação derivada do não endereçamento deste tópico neste trabalho, trataremos, a seguir, de uma proposta de classificação dos diversos tipos de conhecimento humano, tentando mostrar sua importância e algumas características de cada tipo.
São inúmeras as tentativas anteriores de discutir o conhecimento humano. Bertrand Russel, por exemplo, publicou um importante livro intitulado “Human Knowledge: it’s scope and limits” (O Conhecimento Humano: suas possibilidades e limites) em que discute, profundamente, inúmeros conceitos e exigências de precisão em linguagem no entendimento dos avanços, até aquela data, dos conhecimentos das ciências, especialmente as da natureza, ou do mundo físico. Sir Karl Popper, um dos mais brilhantes analistas da epistemologia e membro destacado da importante corrente de pensamento identificada como a Escola de Viena, publicou inúmeros trabalhos, muito rigorosos, sobre o conhecimento humano. Nossa pretensão é muito menor, porque queremos somente introduzir os leitores não versados em Epistemologia em uma primeira incursão no vastíssimo mundo de sua abrangência.
Um brilhante ganhador do Prêmio Nobel, Gunnar Myrdal, sueco e com formação jurídica inicial, mas que se transformou num gigante do pensamento sociológico e científico, em geral, ao analisar o problema do negro nos Estados Unidos, diz que o máximo que se consegue atingir em termos de objetividade em ciências sociais está associado à explicitação anterior dos “valores e pressuposições” feitos ou defendidos pelo pesquisador. Concordando com ele, precisamos esclarecer que os autores acreditam na superioridade da visão liberal sobre as organizações político-social e econômica das nações. Fica o aviso para aqueles que querem saber detalhes sobre as coisas que os autores acreditam, e os valores morais/éticos que têm procurado seguir e transmitir a seus familiares e entes queridos e, por consequência, a seus alunos.
II. As Formas ou tipos de Conhecimento Humano.
II.1 Os Reflexos Condicionados
Existem muitas formas de conhecimento humano, as quais podem ser classificáveis em categorias mais ou menos intuitivas. A mais elementar, nos parece, é o tipo de conhecimento derivado da capacidade humana (comum a muitas outras espécies do reino animal) de identificar regularidades em eventos repetitivos e, consequentemente, desenvolver alguma forma de expectativa – medo, euforia, esperança e outros sentimentos – ou reação, resultante de um processo de aprendizagem em geral, que é conhecido como o condicionamento de reflexos. O fenômeno foi muito bem estudado por Ivan Pavlov e é conhecido como Reflexos Condicionados de Pavlov. Esta é – ou deve ser – a forma mais primária da construção do conhecimento pelas pessoas. Uma grande quantidade de animais superiores – aqui incluídos quase todos os mamíferos – têm a capacidade de desenvolver este tipo de conhecimento. Se alguém coloca um veneno, que mata o animal que dele se alimenta, verá morrer um, ou alguns, dos animais visados; no entanto, muitas espécies daqueles animais aprendem a associar o consumo do veneno, por mais atraente que ele seja, à morte, como consequência. O que se vê é a perda da eficácia do veneno, porque os animais que se quer extinguir logo aprendem que não devem consumí-lo. Na espécie humana, esta forma de conhecimento deve existir, pelo menos, desde os tempos das aparições dos primeiros hominídeos.
II.2 A Primeira Grande Revolução Humana: A Revolução da Conciência.
Uma importante distinção ou característica da espécie humana, no entanto, é sua capacidade de criar mitos ou símbolos e, a partir deles, criar instituições agregadoras, o que lhe permite formar grupos muito maiores do que os pequenos grupos capazes de formar bandos de todas as outras espécies que têm cooperação entre seus membros. O Homo Sapiens (a espécie humana cuja descendência predominou, quase exclusivamente, entre os hominídeos, desde algumas poucas dezenas de milhares de anos) eliminou as outras espécies de hominídeos (do gênero Homo) muito provavelmente pelo que se chamou a grande “revolução da conciência”. Esta revolução concedeu ao Homo Sapiens uma enorme vantagem competitiva na luta pela sobrevivência das espécies. Um exemplo do reino animal ajuda no entendimento deste fenômeno.
Há enorme vantagem da espécie dos leões sobre outros grandes gatos (felinos) porque os leões conseguem ter muita cooperaração entre os elementos de um bando. A cooperação lhes permite muito maior eficiência em suas caçadas para conseguir alimentos para o bando. Ao contrário do guepardo ou do leopardo, que são grandes gatos solitários, praticamente só se juntando em pares na época do acasalamento, os leões dominam seus territórios e tendem a eliminar deles os demais carnívoros, facilitando sua vida de caçadores. Uma regra geral, no entanto, é que os animais cooperadores tendem a apresentar comportamento altamente territorialista, eliminando dele os membros de outros bandos, até mesmo aqueles da sua própria espécie. Além disso, uma característica marcante dos bandos que cooperam parece ser o desenvolvimento, entre seus membros, de um forte sentido de hierarquia. Em geral, estas sociedades apresentam comportamentos de submissão e privilegiatura muito desenvolvidas.
Paleontologistas e outros estudiosos da pre-história humana sugerem que os primeiros agrupamentos de humanídeos, que incluiam o Homo Sapiens, entre outras espécies, só podiam ter um tamanho muito limitado de indivíduos vivendo em grupos hierarquisados e cooperantes porque eles precisavam se conhecer, mais ou menos intimamente, por suas características específicas de aparência visual, cheiro e idiossincrasias comportamentais que os identificavam como pertencentes ao grupo ou clã. E, como acontece com as inúmeras outras espécies animais, os primatas primitivos, independente da espécie a que pertencessem, eram altamente territorialistas. Mesmo indivíduos da mesma espécie eram (de fato, são, em muitos mamíferos) rechaçados, mortos ou imediatamente expulsos do convívio com o bando quando identificados como não pertencentes a aquele grupo específico. Por exigência deste conhecimento íntimo entre os membros do clã, eles nunca devem ter sido formados por um número muito maior do que uma centena de indivíduos no mesmo bando. Esta limitação só foi superada quando aconteceu a chamada primeira revolução humana ou a grande revolução da conciência humana. Por algum fenômento evolutivo ainda não conhecido, a espécie Homo Sapiens desenvolveu a capacidade de criar “mitos” ou “símbolos”, que incluiam o reconhecimento na natureza de elementos associados a manifestações de seres superiores ou entidades supervisoras que ditavam normas para os membros do bando, especialmente permitindo a criação de instituições cujos objetivos e indicações comportamentais deveriam ser comungados e obedecidos por todos. Por exemplo, muitas tribos que habitavam determinadas regiões ou vales específicos se juntavam, periodicamente, para aumentar sua eficiência, ou eficácia, nas caçadas, porque eram exigidos muitos indivíduos na empreitada. As caçadas a bandos de mamutes, ou de outros animais de grande porte, são muitas vezes citadas quando se procura a cooperação de muitos guerreiros para produzir os necessários efeitos. Outras vezes, os mitos ou símbolos eram simples criações de indivíduos pertencentes ao bando, os quais serviam para desenvolver nos seus membros um sentido de pertinência ou identificação de compartilhamento de crença. Noutras, eram adorações de elementos da natureza, como o Sol, a Lua ou os raios, como manifestações sobrenaturais que deveriam ser reverenciadas pelos membros do grupo.
O compartilhamento de crença em determinados mitos ou símbolos – ligados às diversas religiosidades, instituições de controle social, identidade geográfica e muito do que hoje chamamos ideologias, etc – permitiu aos bandos de Homo Sapiens crescerem indefinidamente, com a maioria dos membros do grupo que reconhecia o mito ou símbolo comungando a crença comum que lhes dava a característica de pertinência, ou de pertencer ao grande bando. Assim, ainda a título de exemplo, pertencer às comunidades massons, mussulmana, judaica, cristã de determinada seita, bem como ser cidadão de determinados países e etc, dá a algumas pessoas um sentido de pertinência a grupos muito maiores do que sua convivência íntima poderia permitir. Estes símbolos ou mitos desempenham importantes papéis na resultante coalisão social cooperativa; de fato, a história está cheia de casos em que as pessoas doam a própria vida, ou a de seus filhos ou entes queridos, para ajudar na integridade ameaçada de alguns desses grandes grupos. Os santos da Igreja Católica, as mães nazistas encaminhando seus filhos para a guerra já perdida, pilotos japoneses fazendo ataques suicidas na defesa de seu país e as famílias muçulmanas fundamentalistas que cedem seus filhos para detonar bombas amarradas ao próprio corpo são exemplos, não únicos, da aderência das pessoas àqueles mitos ou símbolos. A cooperação resultante pode ser decisiva na subsistência das respectivas instituições.
II.3 As Verdades Reveladas
Desde cedo, ou pelo menos após a grande revolução da conciência humana no desenvolvimento das sociedades, acredita-se que o conceito de espíritos ou de entidades supervisoras, ou mesmo criadoras, estavam acima dos desígnios humanos e que elas teriam, muitas vezes, ascenção, ou poderes, sobre os agrupamentos ou sobre todos os homens. As evidências antropológicas e os estudos de sociedades primitivas permitem assegurar que, nos mais diversos grupos sociais, sempre havia algum, ou alguns, indivíduo(s) do grupo que detinha(m) privilégios de comunicação com aquelas entidades superiores ou, pelo menos, eram percebidos como capazes de melhor interpretar os desejos ou ditames das diversas deidades, espíritos diversos, inclusive dos antepassados, que precisavam ser atendidos pelos membros do grupo social. Eles desempenhavam o papel de ligação, ou religação, com aqueles entes; daí o conceito inicial de religião, ou religação. O conhecimento comunicado pelos indivíduos privilegiados a todos os membros do grupo social é genericamente conhecido como conhecimento, ou verdade, revelado. As tábuas dos mandamentos são um exemplo de uma revelação feita pelo Deus dos cristãos a Moises.
II.4 As Habilidades de Ofícios
Simultaneamente, ou mesmo nos períodos anteriores, ao longo da saga do desenvolvimento da espécie humana, à medida que as duas formas anteriores – (i) condicionamento de reflexos e (ii) verdades reveladas -, continuavam seu curso, de forma diferenciada em cada grupo social, os indivíduos aprendiam, também, em ritmos e formas diferentes, a manusear ferramentas e processos que consideravam úteis a seus objetivos de sobrevivência e melhoria das qualidades de suas vidas. Estes conhecimentos úteis evoluíram sistematicamente nos agrupamentos gerando categorias conhecidas como as diversas “habilidades de ofícios”, ou profissões . Em períodos mais recentes da história, a proximidade dos indivívuos que se dedicavam a um mesmo ofício levou-os a criar organizações destinadas a garantir a qualidade dos serviços prestados e, às vezes, o monopólio do respectivo mercado. Isto levou, na Europa, ao surgimento de associações gremiais especiais chamadas guildas. A transmissão das respectivas habilidades entre indivíduos, em geral dos mais velhos para os mais novos e, geralmente, feito sob a supervisão das “guildas”, está na raiz dos processos educacionais do Ocidente, os quais englobaram ou coexistiram com as transmissões sistematizadas dos conhecimentos das verdades reveladas. Elas tiveram importantes papéis políticos e no desenvolvimento do sistema universitário do continente europeu. Por outro lado, elas ajudaram a provocar reações de importantes pensadores que estabeleceram os princípios fundamentais sobre os quais se assenta o ideal chamado de visão liberal, de enorme influência nas sociedades ocidentais. É bastante conhecida a afirmação de Adams Smith de que ‘quando dois ou mais indivíduos de um mesmo ofício se juntam para discutir seu negócio é o público que, em geral, sai perdendo.’
II.5 O Conhecimento Artístico
O conhecimento artístico é, também, uma forma extremamente importante de conhecimento existente desde os primórdios da humanidade. Pode-se dizer que o artista é alguém que consegue, de alguma forma – pela palavra (poeta e/ou escritor), pela dança, pela pintura, pela capacidade de representação em geral, pelo cinema, pela música, pela habilidade de pintar, fotografar, esculpir, desenhar, pela apresentação de fatos escolhidos (na parte artística do marketing) e muitas outras – sensibilizar o público objeto da sua comunicação. A comunicação artística toca nos nossos sentimentos mais profundos, ou íntimos, fazendo dela um importante elemento de expansão de crenças, mitos ou símbolos. Por nossas respostas às mais diferentes formas de comunicação artística, reagimos aceitando ou rejeitando proposições argumentativas de maneira complementar, ou alternativa, à aceitação de argumentos que consideramos lógicos (ou necessários e, até, suficientes) ou razoáveis. As artes ou expressões artísticas existem desde os mais remotos tempos da humanidade. Estudos paleontológicos mostram que as artes existiram muito antes do surgimento da escrita. Deve-se notar que algumas formas de comunicação artística estão, também, incorporadas às cargas genéticas de outras especies animais: os cantos dos pássaros, a beleza da plumagem dos machos de algumas espéciess animais e os ritos de danças e exibições dos de outras espécies na atração das fêmeas são indicações desta incorporação genética. Os próprios bebês humanos mostram, muitas vezes, uma impressionante capacidade de acompanhar com seus corpos a cadência de ritmos de diversos tipos de sons. A comunicação artística deve ser vista, assim, como uma forma primária de comunicação que deve ter existido desde antes da revolução da consciência.
“A Criação de Adão”, impressionante obra artística da Capela Sistina de Roma, retratada na Figura 1, mostra uma importante característica dos conhecimentos ocidentais durante a Renascença, na Europa. Segundo aquela visão, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança; ao mesmo tempo o sentido de religação da religião pode ser visto como fortemente sugerido no quadro de Michelangelo. Pode-se dizer que Deus está criando Adão mas, ao mesmo tempo, o braço estendido de Adão sugere uma forte ligação, ou religação da criatura com o criador. Na época, as verdades
Figura 1 A Criação de Adão por Michelangelo Buonarroti.
Capela Sistina do Vaticano, Roma, Itália.