Artigos de Opinião

TRISTE PERSPECTIVA DE UMA NAÇÃO

Fernando Curi Peres

Vania Di Addario Guimarães

José Roberto Canziani

O Brasil, país “deitado eternamente em berço esplêndido”, vive, atualmente, um período de perspectivas sombrias para o desenvolvimento da Nação! Como já insistentemente mostramos[1], na ausência de uma reforma política que, realmente, pusesse nas mãos da população as decisões políticas importantes para a nação, por meio da instituição do voto distrital e da figura do “recall” eleitoral, só resta a alternativa desta mesma população sair às ruas exigindo mudanças radicais, como aconteceu recentemente no Chile. Deve-se notar que o equilíbrio dinâmico que se criou só pode ser perturbado se alguma força agir sobre ele. É claro que isto não garante que soluções boas serão encontradas, mas parece ser a única forma de alterá-lo. Só com lideranças de verdadeiros estadistas elas serão alcançadas. Isto ficou, ainda, mais difícil com a constatação da existência de um novo fenômeno político inaugurado, no Brasil, desde que o Lulopetismo se tornou um fenômeno eleitoral importante, o qual foi muito impulsionado no período Bolsonaro e que parece piorar a cada ano: a polarização extremada da população! A constatação deste importante fenômeno no Brasil veio fartamente documentado em fatos revelados por pesquisas publicadas no livro “Biografia do Abismo” de autoria de Felipe Nunes – cientista político – e de Thomas Traumann – jornalista. O próprio título do livro já sugere, na visão fundamentada em fatos bem mensurados, como as perspectivas políticas do nosso país estão prejudicadas.

Em qualquer democracia verdadeira, existem diferentes visões e percepções políticas que se expressam por meio de partidos, de associações e de organizações sociais que convivem e se desempenham representativamente, com maior ou menor legitimidade, nos parlamentos e nos órgãos de governo. Nas democracias liberais típicas do mundo ocidental, a representatividade da população por pessoas eleitas para atuarem em seu nome pode gerar, e em geral geram, alternância entre visões diferentes das correntes de representantes. Os parlamentos deveriam, para cumprir seu papel fundamental de elaborar as leis do país, representar o mais legitimamente possível as visões e interesses dos diferentes grupos que compõem suas sociedades. Os parlamentos são, portanto, os locais onde as visões e interesses se opõem, se contrapõem e, eventualmente, atingem soluções comuns com as quais a sociedade consegue conviver pacificamente. As diferentes visões e interesses definem adversários e parceiros. Um problema que pode dificultar muito o funcionamento dos parlamentos é a definição do outro como inimigo, em vez de adversário. A radicalização extremada que está caracterizando o processo político brasileiro está criando inimigos, em vez de adversários.

Quando se define o indivíduo que tem visão diferente da sua como inimigo, em vez de como adversário político, suas ações são dirigidas no sentido de eliminá-lo, ou exterminá-lo, em vez de procurar eventuais pontos de convergência e/ou soluções com as quais os diferentes grupos conseguem conviver. Acabam as soluções resultado de consensos ou consentimentos e parte-se para a decisão pela força. É o retorno da tirania e a morte da solução política, ou parlamentar. Apelam-se aos quartéis quando não se enxergam soluções políticas baseadas nas leis. O que levou o Brasil e diversos outros países a apresentarem a polarização extremada de sua população no nível relatado no livro mencionado acima? Pode-se tentar explicar o ocorrido no país aventando diversas hipóteses: primeiro, com a hipótese de que o fenômeno foi grandemente aumentado com o desenvolvimento das mídias de fácil acesso popular; segundo, que o fenômeno se deve à baixa representatividade do processo eleitoral brasileiro; e, finalmente, ou terceiro, a hipótese que é de certo modo causada pela baixa representatividade mencionada, a de que o fenômeno se deve ao funcionamento precário do nosso sistema de poder, que tem hiper utilizado o Judiciário, fazendo-o, ou permitindo-lhe desempenhar um papel para o qual ele não tem legitimidade ou mandato para desempenhar no balanço dos poderes e no sistema de pesos e contrapesos com o Legislativo e com o Executivo. Cada uma das hipóteses mencionadas precisa ser trabalhada.

A impressionante utilização das mídias sociais por grande parte das populações tem, além da desejável característica de democratizar, ou dar acesso a qualquer pessoa à livre manifestação de suas visões e/ou opiniões, ainda apresenta a propriedade de utilização, pelos responsáveis pelas redes, de algoritmos que tendem a isolar e a radicalizar os grupos de pessoas. Um algoritmo é uma sequência de passos lógicos, ou matemáticos na maioria das vezes, que pode identificar e classificar indivíduos em categorias bem definidas. Isto torna muito fácil para os responsáveis pelas diferentes redes sociais classificar cada indivíduo em determinado grupo de opinião e passar a oferecer-lhe somente, ou principalmente, o que ele gostaria de ver e ouvir. O fenômeno faz os indivíduos que se informam, principalmente, nas redes sociais ou em canais exclusivos das diferentes mídias, a radicalizarem, cada vez mais, seus pontos de vista, suas crenças ou, em geral, suas ideologias. Assim, o outro lado da moeda da expansão e democratização da comunicação permitida pela digitalização das mídias, que é altamente desejável, é o aumento na formação de grupos isolados que, de fato, tendem a perder a capacidade de ouvir ou ver opiniões, visões ou ideologias alternativas. Transformam-se em radicais não democratas!

A baixa representatividade do processo eleitoral do parlamento brasileiro é, provavelmente, a principal razão da degeneração e/ou descrença na nossa democracia. Os políticos brasileiros conseguiram desenhar ao longo do tempo um processo eleitoral que dá aos eleitos o controle, ou posse, total do seu mandato. Eles não precisam representar um grupo qualquer de eleitores. Podem representar tão e somente os seus próprios interesses! Em sistemas eleitorais desenhados para manter a legitimidade da representação popular, o eleitor sabe em quem votou e, acima de tudo, sabe quem o seu voto acabou elegendo. Isto não acontece nas nossas Câmaras de Deputados – estaduais ou na federal – e nas Câmaras de Vereadores, pela ausência do voto distrital. Praticamente ninguém sabe para quem o seu voto acabou contribuindo para eleger. O eleitor vota no Tiririca como voto de protesto contra o sistema atual e acaba elegendo um apadrinhado do poderoso Valdemar da Costa Neto, conhecido chefe político condenado por corrupção no Caso do Mensalão. Ele acaba elegendo um político contra o qual seu voto de protesto se dirigia! Tamanha distorção só pode ser corrigida com o voto distrital. O voto distrital permitiria corrigir duas importantes aberrações de nosso sistema eleitoral.

A primeira aberração do nosso sistema eleitoral é responsável pela enorme diferença de representação na Câmara dos Deputados Federais: estados muito populosos, como São Paulo por exemplo, tem cerca de 44,5 milhões de habitantes e elege 70 deputados federais; Roraima, com 652.000 habitantes elege 8 deputados federais. Em São Paulo, 44,5/70 = 635.000 habitantes elegem um deputado federal; em Roraima bastam 652.000/7 = 81.500 habitantes para eleger um. Ou seja, em São Paulo são necessários quase 8 vezes mais eleitores para eleger um deputado federal do que em Roraima. Deve-se notar que a existência de um Sistema Legislativo bicameral, com o Senado contendo o mesmo número de representantes por estado, tem sua justificativa no fato de nos chamarmos uma federação de estados, que deveriam ser relativamente autônomos. Assim, não há justificativa para a enorme distorção na atual representação por estados na Câmara dos Deputados Federais. A outra enorme distorção do sistema eleitoral nas câmaras de deputados e de vereadores municipais é responsável pela dissociação entre eleitores e eleitos. A perversidade do sistema praticamente impede o eleitor de saber quem o seu voto acabou elegendo. Isto é muito conveniente para os eleitos porque eles não precisam prestar contas a seus eleitores. Podem “vender” seus votos em troco de cargos no Executivo, nas inúmeras empresas estatais existentes em todo o país, nos âmbitos dos níveis federal, estaduais e municipais, ou em troca da liberação de emendas para atender locais ou pessoas apadrinhadas.

O voto distrital dá aos eleitores uma relação direta e identificada com o representante eleito por seu distrito. Desta forma, ele pode saber quem seu voto elegeu e decidir se quer, ou não, manter o eleito nas próximas eleições. Um exemplo de como poderia funcionar no Brasil pode ajudar o eleitor a entender todo o alcance do voto distrital: Em 2022 o pais tinha cerca de 156,5 milhões de eleitores aptos a exercer seu direito de voto. Com uma Câmara de Deputados Federais formadas por 513 eleitos, o correspondente coeficiente eleitoral seria 156,5/513 = 305.000. Cada estado teria um número de distritos iguais ao seu número de eleitores divididos por 305.000. Isto corrigiria a primeira distorção do sistema porque a correspondente representação política de cada estado na Câmara de Deputados seria proporcional a sua população (ou número de eleitores). Cada partido poderia apresentar um, e somente um, candidato a Deputado Federal em cada distrito e o candidato, em um ou dois turnos, que tivesse a maioria dos votos seria o representante eleito daquele distrito. Os eleitores saberiam quem seria seu representante e poderiam acompanhar seu desempenho na Cãmara e dar-lhe, ou não, seu voto na próxima eleição. Desta forma, os eleitos teriam que prestar contas a seus eleitores!

A terceira hipótese trata da superutilização do Poder Judiciário quando os três poderes da república – Executivo, Judiciário e Legislativo – deveriam ser independentes e funcionar no sistema de pesos e contrapesos na condução da coisa pública. Como nosso Judiciário não tem a legitimidade derivada da escolha dos membros dos tribunais e do controle do Ministério Público com respaldo de representantes legítimos da população (que só o voto distrital é capaz de garantir), os outros dois poderes, o Executivo e o Legislativo, acabam utilizando-o para seus fins políticos quando os parlamentos não representativos da população não conseguem decidir, ou tentam decidir sem o necessário suporte da população. É o caso do uso recente da decisão do chamado Marco Regulatório da demarcação de terras indígenas. Como o próprio Presidente Lula admitiu, com a atual composição do Congresso Nacional (ele chamou de “com a composição geopolítica atual”) a mudança que ele pretendia no Marco Regulatório nunca seria aprovada. Assim, o STF, que é politicamente dócil ao Poder Executivo, tomou a iniciativa inconstitucional de aprovar a pretendida mudança. Esta interferência inconstitucional do Judiciário tira o respeito que o Poder Judiciário precisa ter por parte da população, reduzindo sua competência de cumprir, corretamente, seu papel de pacificar a Nação!

Provavelmente, elementos das três hipóteses mencionadas estão presentes na explicação correta do fenômeno da excessiva polarização da sociedade brasileira. Isto dificulta a possível solução que surgiria se a população fosse às ruas, como aconteceu em 2013, exigindo mudanças no sentido do aprimoramento da democracia no Brasil. Sem isto, o equilíbrio dinâmico que se estabeleceu entre forças políticas que participam do butim exploratório da população brasileira – certas camadas altas do funcionalismo público, os representantes ilegitimamente eleitos do Legislativo e os empresários que “fazem sua fortuna mamando nas tetas dos governos” – continuarão sem serem molestados e a impor à população brasileira, especialmente à camada dos mais pobres, o ônus de manter esta situação de privilégios. É interessante constatar que, apesar do discurso distributivista das esquerdas brasileiras, elas são o principal suporte político dos mencionados grupos de privilegiados exploradores!

[1] Ver artigos intitulados “O Brasil pouco Republicano” e “Uma falsa Dicotomia” no blog Opinioesdocampo.com

Compartilhe:

A ARGENTINIZAÇÃO DA POLÍTICA BRASILEIRA

Fernando Curi Peres

Vania Di Addario Guimarães

José Roberto Canziani

Com o recente processo eleitoral ocorrendo no país vizinho, os instrumentos de mídia brasileira têm noticiado o apoio que tanto nossas correntes de pensamento políticas de esquerda quanto os de extrema direita estão emprestando aos irmãos próximos. Entre os camaradas esquerdistas brasileiros da iniciativa chamada Fórum de São Paulo, conhecidos “marketeiros” ligados ao Lulopetismo estão ajudando os peronistas e grupos afins a se manterem no poder naquele país. Ora, uma das características dos países democráticos é a alternância de poder entre grupos que têm visões políticas tão diversas como os peronistas e aliados de um lado, e grupos mais liberais de outro. A Argentina, por sua vez, merece ser interpretada em sua persistência, ou predominância, marcante de peronistas ocupando o governo central do país desde os últimos anos da primeira metade do Século XX. Como explicar a manutenção por tantas décadas de uma orientação política que, claramente, têm produzido resultados tão ruins?

Enquanto a Argentina foi, na primeira metade do século passado, uma importante exportadora de produtos de sua agricultura altamente competitiva, seus índices de desenvolvimento estavam entre os mais altos do mundo nos itens mais relevantes que medem educação, consumo alimentar, desenvolvimento artístico e outros indicadores de superior qualidade de vida. A pergunta difícil de ser respondida é a que questiona como foi possível que um país que tenha alcançado níveis de bem estar social tão altos entrar em um processo de deterioração permanente da qualidade de vida de sua população? Quando Abrahan Lincoln sugeriu que ‘se pode enganar a alguns por muito tempo, mas era impossível enganar a todos por todo o tempo’ ele, certamente, não conhecia, nem podia imaginar que aconteceria um caso como o da Argentina!

Entre as causas da deterioração econômica e política da sociedade Argentina está, com certeza, a alta instabilidade institucional do país. É sempre possível argumentar que a instabilidade institucional é resultado e não causa do declínio da Nação, quando avaliado pelos índices atualmente usados como indicadores de mais altos IDHs das sociedades. As altas inflações suportadas e permitidas pelos seus processos políticos, as inúmeras quebras de contratos implementadas por seus governos centrais e o populismo prevalescente nos seus processos políticos sugerem que a desvalorização, ou o desprezo pela estabilidade institucional tem sido uma característica persistente no país. Neste sentido, a sociedade argentina pode ser indicada como a principal vítima de um modelo errado de desenvolvimento econômico que ignora as vantagens comparativas de um país e decide que ele precisa da industrialização forçada para conseguir fugir da condição de ‘economia satélite e dependente’[1] de economias centrais para obter produtos industrializados.

Ao contrário dos países da Oceania – Nova Zelândia e Austrália – por exemplo, que se desenvolveram abrindo suas economias e privilegiando as forças de mercado que atuam com base nas respectivas vantagens comparativas[2], a orientação dos processos econômicos dos países que sofreram forte influência da perspectiva Cepalina de promoção da industrialização a qualquer custo cobrou um alto preço das respectivas sociedades. Às custas da penalização pesada de suas cadeias eficientes, que no Brasil correspondiam a alguns setores do agronegócio e do mineral, desenvolveram um imenso setor industrial que, em sua maioria, transformou-se em subsetores, ou cadeias, ineficientes e dependentes de subsídios permanentes para se manterem ativos. Na Argentina o processo peronista de penalização do seu agro foi e continua sendo extremamente perverso na destruição de seus setores mais competitivos para financiar uma industrialização ineficiente e forçar a transferência de rendas da agricultura para os setores urbanos da economia.

A discussão sobre o modelo de desenvolvimento argentino – assim como o brasileiro[3] – teve uma enorme influência dos economistas Raul Prebisch, argentino e principal teórico desde a criação da CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe –, e do ex-ministro romeno Mihail Manoïlesco, na adoção de políticas centralizadoras de promoção da sua urbanização e da indústria de transformação com financiamento e tripulação retirados na marra, ou por expropriação, dos setores exportadores eficientes do agro. As forças políticas brasileiras tiveram, em décadas recentes e por razões que não cabem aqui serem discutidas, o bom senso de dirigirem ao seu agro algumas medidas voltadas ao desenvolvimento de cadeias de alimentos, fibras e energia, por meio do estímulo à pesquisa e ao ensino, além de políticas de crédito e preços mínimos. A Argentina continuou com a orientação peronista de transferência de rendas do agro para os setores urbanos. Conseguiram a proeza, quase única entre as sociedades que são conhecidas, de transformar em relativamente pobre uma economia que foi das mais ricas do mundo!

Normalmente, governos populistas gastam mais do que arrecadam para conceder benesses a certos setores da sociedade. Com isso, esses benefícios se transformam em aprovações políticas por parte da população menos esclarecida, ou por aqueles que as recebem. Mais adiante, no entanto, essas políticas geram aumento da dívida pública e/ou da inflação e a desvalorização da moeda nacional, causando o empobrecimento mais geral da população. Paradoxalmente, não é fácil derrubar esses governos, pois mesmo os mais pobres têm receio de perder as benesses concedidas pelo governo populista. Em muitos casos, como o brasileiro, uma parte importante dos recursos arrecadados pelo governo vêm de impostos indiretos[4], que a população menos esclarecida não percebe que ela mesmo está pagando. È impressionante como as pesquisas mostram que as camadas mais pobres de nossa população não sabem que elas pagam uma maior fração de suas rendas como impostos indiretos, ao contrário do que acontece com os membros das classes mais ricas da sociedade.

As esquerdas da América Latina têm sido muito eficientes em conseguir suporte para populistas que prometem a seus povos qualidades de vida que não estão ao seu alcance. A baixíssima sofisticação política de suas populações, para a qual colabora a péssima qualidade de seus sistemas de ensino, está permitindo a manutenção nos respectivos poderes políticos de populistas hábeis em enganar este tipo de eleitor. Isto acontece particularmente no Brasil, onde se atingiu um nível de vulgarização de práticas de corrupção que dificilmente seriam aceitas em sociedades onde os estoques de capitais humanos e sociais são superiores. Para elevar estes estoques, uma condição fundamental no processo requer uma transformação profunda em seus sistemas educacionais e políticos que, praticamente, estão ausentes nos nossos respectivos debates políticos. Só com profundas reformas política e educacional teremos a chance de fugir da correspondente armadilha populista na qual estamos presos!

[1] Como foram classificadas, na época, as economias.

[2] As políticas nos dois países da Oceania – Austrália e Nova Zelândia – foram, ao contrário das intervencionistas da América Latina, voltadas, principalmente para a educação de sua população e para estímulos concorrenciais que privilegiaram o desenvolvimento de setores nos quais suas economias têm claras vantagens comparativas. Hoje suas sociedades apresentam IDHs entre os mais altos do mundo, mostrando a superioridade da perspectiva liberal sobre a Cepalina de promoção da industrialização a qualquer custo.

[3] No Brasil ficou bastante conhecida a controversa iniciada nos anos 1943-44 entre o industrial Roberto Simonsen e o economista Eugênio Gudin que defendiam posições opostas quanto à industrialização induzida por políticas centralizadoras. Publicada em seu seminal “A Lanterna de Popa” o economista Roberto Campos assim descreve alguns elementos daquela importante controversa:

 (Eugênio) Gudin insistia em que o processo industrializante deveria observar as linhas de vantagens comparativas e deveria caber principalmente ao setor privado, sem se relegar a agricultura à posição de vaca leiteira para financiar a industrialização

[4] Impostos indiretos são aqueles que não dependem da renda auferida pelo indivíduo, ou pela  família.

Compartilhe:

UMA FALSA DICOTOMIA

Fernando Curi Peres

Vania Di Addario Guimarães

José Roberto Canziani

      È necessário chamar a atenção dos leitores, pelo menos daquelas pessoas cujas fontes de informações vão além do WhatsApp e do Twiter, para a falsa dicotomia implícita na polarização política que nos chama, os não lulopetistas, de bolsonaristas. Nunca votamos no Lula, e/ou nos candidatos do PT, porque somos, e cremos, no liberalismo como definido pelos membros da chamada Escola de Viena, sintetizada e apresentada ao mundo na segunda metade do Século XIX e início do Século XX. Bolsonaro se apresentou à população brasileira como candidato à presidência da república em 2018 pousando de liberal. Acreditamos, e votamos nele, quando disse que não entendia de economia e delegaria ao seu Posto Ipiranga (Paulo Guedes) a gestão da economia nacional. Apesar de seu Ministro da Economia, Dr. Paulo Guedes, ser egresso de uma escola onde notoriamente predomina o pensamento liberal – Universidade de Chicago, USA – sua atuação como Ministro da Economia mostrou-se totalmente distanciada das prescrições que deveriam caracterizar a de um verdadeiro liberal. Não estamos dizendo que ele precisava seguir estritamente todas as prescrições liberais, principalmente sendo ministro de um presidente que, posteriormente, mostrou ser claramente corporativista, patrimonialista e averso à maioria das políticas liberais; por outro lado, um verdadeiro liberal não se apega ao poder, não faz tantas conceções e não permite tantas tentativas governamentais de implantar políticas contrárias ao liberalismo, como ele fez. Como bem fez o Secretário de Desestatização Salim Mattar, Paulo Guedes estaria sendo fiel aos princípios que diz acreditar se tivesse “entregado o chapéu e pedido demissão do governo”.

      O ex-secretário Salim Mattar, a nosso ver, um verdadeiro liberal, deixou prematuramente seu cargo no governo, ao constatar que, de fato, não existia uma real intenção de fazer cumprir o anunciado programa de privatizações apresentado pelo candidato Bolsonaro. Embora alegado por bolsonaristas que a resistência maior veio do Congresso Nacional, qualquer analista, mesmo os menos informados, deveria saber que haveriam dificuldades numa tentativa de privatização de, pelo menos, parte importante do enorme conjunto de estatais do governo central, uma vez que temos uma representação política eivada de vícios de legitimidade oriundos do nosso processo eleitoral. Nossas eleições para deputados e vereadores são altamente viesadas no sentido de tirar do eleitor o poder de controlar os eleitos. As instituições do voto distrital e do “recall eleitoral” melhorariam muito a legitimidade e funcionamento do nosso sistema, como acontece em muitas democracias amadurecidas, exatamente as correspondentes à maioria dos países desenvolvidos do mundo.

        Uma das principais razões para se entender as resistências dos membros do Congresso Nacional ao processo de privatizações está, exatamente, na análise do equilíbrio dinâmico dos estímulos que movem os diferentes atores do processo político e eleitoral do Brasil. Como em qualquer outro país do mundo, o realismo exigido de análises dos processos políticos precisa basear-se na pressuposição fundamental de que os diferentes atores agem de acordo com seus próprios interesses. Isto é perfeitamente compatível com a existência de verdadeiros espíritos de estadistas, característicos de pessoas que são capazes de entender que eles próprios, suas famílias e seus entes queridos e descendentes têm e terão melhores qualidades de vida se habitarem regiões com sociedades mais desenvolvidas. O conceito de desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen1 é o que consideramos na nossa mensuração de desenvolvimento. Ora, o perverso equilíbrio político atingido pela Nação Brasileira é um exemplo claro de como nosso sistema institucional está permitindo uma acomodação de interesses privados de forma prejudicial à maioria da população do país. Como em todo equilíbrio dinâmico, ele só será alterado se alguma força externa for aplicada a ele!

       Nossa pulverização partidária, ferrenhamente defendida até pela mais alta corte do nosso Poder Judiciário2 , além da maioria de caciques dos partidos, somado ao processo de contagem de votos para a eleição das câmaras de deputados e de vereadores, dificulta a eleição de claras maiorias nos colegiados eleitos. A perversidade maior está na desvinculação entre os eleitores e os eleitos! Dificilmente o eleitor médio se lembra em quem votou para deputados ou para vereador; pior ainda, quase ninguém sequer sabe quem o seu voto acabou elegendo! Deve-se notar que somente cerca de 5% de nossos deputados federais são eleitos com seus próprios votos. Isto desobriga totalmente o eleito de prestar conta de seus atos aos eleitores. O eleito torna-se dono de seumandato, embora o próprio nome do cargo indique que ele é um representante de eleitores. Desta forma, está montado o quadro institucional que explica perfeitamente como o equilíbrio atual, no qual os deputados e vereadores cuidam majoritariamente de seus interesses privados, os quais são grandemente “estimulados” por cargos e benefícios em empresas estatais para seus prepostos e em manejos corruptos dos orçamentos governamentais. Por isso são contra as privatizações!

       O Poder Judiciário também é parte deste equilíbrio dinâmico que explica a estabilidade do uso da coisa pública por uma elite de privilegiados; ele não interfere neste equilíbrio perverso, desde que possa continuar estabelecendo suas próprias condições, altamente favoráveis, de trabalho. É dos sistemas judiciários mais caros do mundo, com salários e vantagens de remunerações que beiram ao acinte, dado o nível de renda da maioria da nossa população, com férias excepcionalmente longas, que podem ser parcialmente vendidas por valores monetários altos e que, em cima de todos estes privilégios, apresenta à população resultados pífios, em termos do que se espera de seus serviços. Na justiça dos países anglicanos (Common Law), é dito que “Justice delayed is justice denied!” (justiça tardia é justiça negada), Por sua morosidade no Brasil nossa Justiça efetivamente é negada à grande parte da população. Pior ainda, ela é percebida como viesada, tendendo para o benefício dos poderosos e o prejuízo dos pobres. De fato, nosso sistema judiciário está em processo de perder o pouco que lhe resta da efetividade de seu poder de pacificação social, dado sua incapacidade de sinalizar à população o que seriam comportamentos sociais aceitáveis. A tolerância abertamente demonstrada com a corrupção por parte dos membros do governo desmoraliza o Judiciário. Assim, o judiciário não interfere no funcionamento perverso dos outros dois poderes desde que eles não mexam com as vantagens dos membros do judiciário. No equilíbrio mencionado, os eleitos não tocam nos privilégios dos membros do judiciário por medo de possíveis retaliações.

   Como descrito, o equilíbrio que se estabeleceu no sistema de governo brasileiro tende a manter o enorme número de empresas sob o controle do Poder Executivo, como forma de ser utilizado na extensão de benefícios aos membros do Poder Legislativo. Estes benefícios funcionam como contrapartida às necessidades do executivo de recursos monetários para sustentar políticas públicas populistas as quais lhes garantem a manutenção do poder. Como parte do butim é reservado aos membros do Poder Judiciário, este não incomoda o equilíbrio estabelecido. Ora, foi frustrante observar que a promessa liberal do governo Bolsonaro de quebrar este perverso equilíbrio dinâmico nunca foi efetivamente tentada! Por isso os liberais não são bolsonaristas! Bolsonaro recebeu muitos votos de liberais, porque a alternativa era pior, no processo polarizado em que se desenvolveram as eleições presidenciais de 2022. Muitos outros, no entanto, votaram em Lula porque acreditaram nas ameaças de interrupção do processo democrático feitas pelo então Presidente Bolsonaro. Agora os liberais precisam escolher candidatos que, efetiva e realmente, defendam as bandeiras sociais, econômicas e políticas do verdadeiro liberalismo. Ao contrário do que as esquerdas propagam, esta ideologia defende políticas que nos últimos (100) cem anos mostrou ao mundo que, quando consistentemente adotadas, levam a maiores graus de justiça social, equidade e bem estar populacional.

       Quando procuramos classificar países em termos da qualidade de vida de que desfruta sua população atual, é preciso reconhecer que aqueles melhores colocados são, exatamente, os que adotaram políticas liberais consistentemente. Estamos falando na qualidade de vida associada não somente a maiores possibilidades de consumo de bens e serviços de qualidade, mas também de liberdades e da segurança de que os direitos de seus cidadãos serão preservados sem a presença de estados opressores que ditam comportamentos arbitrariamente escolhidos por membros de castas dominantes, sejam elas formadas por ditadores ou por partidos que não se sujeitam ao controle efetivo da sua população.

1 SEN, Amartya (1999) Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda.

2 Em 2006 “O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos) que instituem a chamada ‘cláusula de barreira’”. Em https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=68591&ori= Acesso em 20/08/2023.

Compartilhe:

O BRASIL POUCO REPUBLICANO

Fernando Curi Peres

Na segunda metade de outubro deste ano (2021), a Câmara dos
Deputados do Brasil discutiu, apreciou e votou um projeto de emenda
constitucional que submetia as ações do Ministério Público brasileiro ao
controle de um conselho no qual se incluiria, com alto peso proporcional,
representantes do Poder Legislativo. O projeto foi rejeitado por não atingir o
número necessário de votos favoráveis na primeira das duas votações exigidas
na Câmara dos Deputados antes de ser enviado para o Senado Federal.
Representantes da corporação dos membros do Ministério Público se
mobilizaram e pressionaram os senhores deputados federais a negar seu apoio
ao projeto de lei alegando, principalmente, que ele, se aprovado, tiraria a
independência da instituição. Dois importantes aspectos na análise política
desse evento devem ser ressaltados: (i) o alto grau de corporativismo do
funcionalismo público brasileiro e, acima de tudo, (ii) a não necessidade dos
representantes eleitos para o Congresso Nacional prestar contas aos seus
eleitores. Estes dois aspectos precisam ser bem compreendidos por todos que
gostariam de ver o Brasil avançando no aprimoramento da nossa república.
De tanto ver a manutenção de privilégios acessíveis a algumas camadas
do funcionalismo público brasileiro, a população parece ter perdido sua
capacidade de indignar-se com o fenômeno. Em 2017, o Banco Internacional
para a Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD, The World Bank – publicou
um estudo 1 que conduziu a pedido do Governo Brasileiro e que mostrou,
claramente, que o funcionalismo público brasileiro recebe valores muito
superiores aos que recebem empregados de mesma qualificação no setor
privado para desempenharem as mesmas funções. Além disso, o
funcionalismo tem sempre garantido seu emprego; de fato, algumas categorias
chegam ao cúmulo de receber, como punição exemplar por atitudes ou
desempenhos incompatíveis com os respectivos cargos ou funções, a
penalidade de serem aposentados percebendo seus vencimentos integrais. È o
que se observa em muitos casos de violações de comportamentos adequados
e de desempenhos esperados de juízes de diferentes varas e das inúmeras
cortes do país.
O caso mencionado de exemplo do corporativismo extremado dos
membros do Ministério Público Brasileiro ilustra bem o primeiro problema
mencionado no parágrafo introdutório. Desde a promulgação da Constituição
de 1988 o país tem convivido com uma corporação praticamente isenta de
controles republicanos. È certo que o Presidente da República indica e o
Senado Federal aceita, ou não, a indicação do Procurador Geral da República,
o que lhe dá algum ar de legitimidade; no entanto, é preciso lembrar que a
escolha do Presidente está limitada por uma lista tríplice elaborada por votação
interna pelos membros da corporação. Um caso político recente ilustra a ação
corporativa da instituição.

1 BIRD (The World Bank). Um Ajuste Justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil.
2017

Em 2017, quando o Congresso Nacional estava às vésperas de votar a
chamada Reforma da Previdência, iniciativa que contava com o desejo da
grande maioria da população brasileira, como reportado em inúmeras
pesquisas de opinião, o funcionalismo público federal pôs-se francamente
contrário àquela modificação legal que reduziria parte de seus privilégios. O Sr.
Rodrigo Janot, então Procurador Geral da República e sabidamente líder dos
anseios de sua corporação, esperou o momento certo e oportuno para matar
as chances de aprovação da matéria pelo Congresso, por meio de uma
denúncia baseada em provas contra o Sr. Presidente da República induzidas
por membros da própria corporação. A eficiente jogada política deu ao
funcionalismo mais dois anos de privilégios, às custas de aumentos nos déficits
públicos do país.
O fenômeno se repetiu recentemente com a mobilização do Ministério
Público contra a tentativa do Congresso Nacional de limitar a autonomia da
corporação. Sabe-se que o poder tende a corromper e o poder absoluto tende
a corromper absolutamente. Uma corporação tão poderosa dentro de uma
nação regida por regras republicanas não pode ser permitida se ela tem um
poder corporativo que atue sem alguma forma de controle social. Nos Estados
Unidos, por exemplo, os promotores são, em muitos estados, eleitos por
votação direta pela população. Mais ainda, mesmo onde não são diretamente
eleitos pela população, eles podem ser tirados de seus cargos por votação –
recall – direta pela população. Os anais do nosso Congresso Nacional são
riquíssimos em mostrar situações denunciadas de ações arbitrárias e ilegais de
membros do Ministério Público que se julgam acima da lei e têm, muitas vezes,
infernizado a vida de segmentos da população brasileira.
Em entrevista a um veículo de mídia em outubro passado, o então
membro do Ministério Público, Dr. Deltan Dallagnol conclamou os ouvintes a
“ligarem para seus congressistas” e manifestarem sua insatisfação com o
projeto de lei sendo votado. O evento é muito rico como ilustração dos dois
pontos que estamos tratando neste artigo. Em que pese a admiração e gratidão
que temos para com a equipe que conduziu a chamada Operação Lava Jato,
onde Deltan Dallagnol, Carlos Fernando Lima e Sergio Moro, entre outros,
mostraram que a lei pode ser aplicada a todos e não somente aos pobres,
pretos e prostitutas (PPP, como popularmente conhecida), ela não pode servir
para garantir poderes absolutos a uma corporação pública. È preciso que toda
a estrutura governamental esteja sujeita ao controle da população.
Engraçado foi o Dr. Dallagnol conclamar os ouvintes a “ligarem para
seus congressistas.” Quem sabe, no Brasil, quem é seu congressista? Dos 513
Deputados Federais do Brasil, só 27 (5,26%) foram eleitos com seus próprios
votos. Qual a implicação deste dado? É por esta razão que a grande maioria
dos eleitores do país não sabe, ou não se lembra, em quem votou para
deputado; mais sério ainda, mesmo aqueles que se lembram em quem votou
não fazem a menor ideia sobre quem o seu voto acabou elegendo. Isto
garante, para satisfação dos eleitos, a completa independência de seu
mandato. Eles não têm que prestar contas a ninguém! Por isso, não existe a
figura do “seu congressista” para a população do Brasil, exceto para 5,26% dos
eleitos para a Câmara dos Deputados do Brasil. Infelizmente, não há como a
população dizer a seus representantes como gostaria que agissem e votassem.
Nas democracias mais desenvolvidas do mundo os votos são distritais.

Nos regimes eleitorais onde existe o voto distrital, cada partido
apresenta um candidato a deputado federal naquele distrito. O mais votado no
distrito – ou o mais votado no segundo turno quando nenhum atinge
determinado limite de votos – é eleito como representante do distrito. Todos os
habitantes daquele distrito, que é formado por determinadas áreas contíguas e
com número igual de eleitores, sabem quem é o representante do distrito no
colegiado. Os eleitores sabem de quem cobrar e sabem em quem votar/não
votar nas próximas eleições. Isto garante que o eleito tenha que prestar contas
a seus eleitores. O mesmo vale para as Assembleias Legislativas dos Estados
e para as Câmaras de Vereadores dos Municípios. No Brasil, vereadores e
deputados fogem dos regimes eleitorais distritais tais como o diabo foge da
cruz! Eles têm razão porque nos regimes distritais o cargo pertence aos
eleitores e não aos eleitos. Sem os votos distritais eles podem vender seus
votos em troca de emendas de relatores ou em troca de maior participação nos
fundos eleitorais. Podem, ainda, vender seus votos ao executivo em troca da
indicação de parentes e/ou amigos no preenchimento de cobiçados cargos no
executivo ou em empresas estatais.

[1] Na possível eventualidade do número dentro do parêntese ser maior que a unidade deve-se considerar o valor como unitário

Compartilhe:

UM SISTEMA POLÍTICO FUNDADO EM COMPORTAMENTOS HIPÓCRITAS

Fernando Curi Peres

A hipocrisia é definida como o ato de esconder a verdadeira identidade, ou os verdadeiros objetivos, de uma pessoa, por meio de posturas opostas àquelas apresentadas como as suas. São os moralistas de fachada que, sempre que podem evitar as consequências sociais de seus atos, exibem suas atitudes íntimas altamente contrárias à moral socialmente aceita; são os que posam de altruístas quando, de fato, estão buscando benefícios para si próprios ou para seus entes próximos; são os que se apresentam como desinteressados quanto aos resultados de determinadas ações, mas que, de fato, são os beneficiários finais daquelas ações. Hipócritas são, enfim, todos os que posam de bom caráter quando, por detrás de sua fachada, escondem atitudes e crenças que são altamente prejudiciais aos grupos aos quais pertencem, ou a pessoas às quais deveriam servir. Os populistas são hipócritas eficientes no convencimento de grandes massas! Sua habilidade e carisma são canalizados no sentido de convencer grandes grupos de pessoas na defesa de objetivos que juram perseguir, mas que, de fato, são grandes mentiras estrategicamente pensadas para enganar os bons sentimentos das massas. As bandeiras dos populistas são as principais causas de frustações das massas populacionais fanaticamente conduzidas para o atingimento de ideais utópicos ou não possíveis de realização prática.    

A hipocrisia é um tipo de comportamento facilmente encontrado em meios políticos, especialmente em casos, como o brasileiro, em que os eleitores não têm como acompanhar o comportamento daqueles que seu voto contribuiu para eleger. Isto é particularmente sério nas eleições nacionais não majoritárias, ou proporcionais. Nossas eleições para as câmaras de deputados – a nacional e as estaduais – e para as câmaras de vereadores, que deveriam ser as casas de representações do povo, são feitas para separar os eleitos dos eleitores. Com os sistemas atuais de votos de legendas, praticamente não há como o eleitor conhecer e acompanhar as atitudes e decisões daqueles que seus votos contribuíram para eleger. A reforma política proposta e que deve ser aprovada no congresso nacional deverá aumentar, em vez de reduzir, a separação entre eleitores e eleitos. A volta das coligações partidárias, travestidas de federações de partidos, permitirá, por exemplo, a continuação da vergonhosa apropriação pelos caciques partidários dos recursos dos indecentes fundos partidários, excrecência que os eleitos criaram para continuar a se apropriar de recursos públicos sem ter que prestar contas sobre seus usos.

A recente atitude do nosso Poder Executivo Federal propondo a legalização do pagamento parcelado da maior parte dos precatórios, para os quais o Orçamento Federal deveria prever o pagamento imediato, mostra um exemplo de atitude hipócrita extrema! Precatórios são uma instituição nacional que deveria nos envergonhar a todos; eles são o reconhecimento explícito de que um dos três pilares da democracia, o Poder Judiciário, que junto do Legislativo e do Executivo deveriam funcionar como pesos e contrapesos na manutenção do equilíbrio dos poderes governamentais do país, não está sendo acatado em suas decisões. Quando um processo “transita em julgado” na justiça, isto quer dizer que ela definitivamente decidiu sobre algum direito que passa a ser líquido e certo. Apesar da nossa justiça ser extremamente lenta e permitir que agentes que têm suficientes recursos financeiros possam continuar recorrendo por meio de quase infinitas possibilidades, especialmente os próprios governantes, aquelas pendências que, finalmente, chegam a “transitar em julgado” deveriam ser necessariamente obedecidas, especialmente pelos governos. No entanto, pela criação dos precatórios, os executivos dos três níveis de governos – federal, estadual e municipal – recorrem à vergonhosa postura de alegar que não podem cumprir o que a justiça determinou como um direito líquido e certo das pessoas, instituições ou empresas. Reconhecem a dívida, mas alegam que não podem paga-la!

Em geral, a vergonhosa existência dos precatórios resulta de decisões erradas de agentes governamentais que desrespeitam direitos de entes federativos que atuam sob sua área de governo. Estes agentes governamentais, mesmo quando sabem que estão usurpando direitos líquidos e certos dos entes sob seu governo – pessoas, empresas e outras instituições -, continuam implementando ações que a lentidão da justiça acabará por jogar nas costas de orçamentos que terão que ser executados por futuros governantes. Isto permite aos populistas ofertar “bondades” aos seus eleitores ou, mesmo, benefícios indecentes aos grupos que lhes dão suporte. Fazem isto sem que os respectivos poderes legislativos se lhes oponha, uma vez que os membros deste poder não precisam prestar contas à população que os elegeu em sistemas eleitorais que separa eleito do eleitor. Na ausência do voto distrital, os membros do Poder Legislativo, que deveriam vigiar as ações do Executivo, podem, assim, ser cooptados em seus interesses particulares por benesses oferecidas pelos membros do Poder Executivo. Isto fecha o ciclo vergonhoso do qual a população, ou os eleitores, são as principais vítimas. A eles, sobra a conta a pagar!

Nas palavras de um dos maiores pensadores do Século XX, Sir Bertrand Russel, o escopo de todas as ciências é sua transformação na Física. Em Física é necessário equacionar os fenômenos e poder, sempre, avaliar, ou quantificar, as resultantes ou os novos equilíbrios. Embora estejamos, claramente, emitindo opinião política nesta manifestação, nosso treino em ciência nos sugere tentar mensurar o grau de hipocrisia exibido por grande parte de nossos políticos, especialmente os atuais ocupantes de nosso Poder Executivo. Como exaustivamente denunciado na imprensa, a indecorosa proposta de mudar a lei para permitir ao governo federal não pagar os devidos precatórios (nossas desculpas pelo pleonasmo), além de violar o teto legal dos gastos, tem a finalidade principal de liberar recursos para que o atual Presidente da República possa conceder benesses ao grupo desprivilegiado da população, de forma altamente eleitoreira. Não estamos discutindo se o auxílio às populações de baixa renda é, ou não, necessário. Este subgrupo de nossa população poderia ser assistido de maneira justa sem que para isto o governo precisasse recorrer à violência jurídica de postergar o pagamento dos precatórios, principalmente quando se sabe que muitos dos processos que lhes deram origem duraram muitos anos na “via crucis” característica do sistema judicial do nosso país. Alguns processos duraram até dezenas de anos antes de atingirem seu trânsito em julgado. Como pode ser mensurado, ou medido, o grau de hipocrisia envolvido nesta atitude governamental?

Pode-se, por exemplo, criar e avaliar um Índice da Hipocrisia Orçamentária Brasileira (IHOB). Sua forma algébrica poderia ser:  

IHOB = [1 – ($ Precatórios pagos no ano/$ Precatórios Devidos)]*100  

Os valores entre parênteses são os montantes dos precatórios pagos no ano, dividido pelo montante dos precatórios devidos por aquele nível de governo. O valor do índice vai de zero % – baixa hipocrisia orçamentária – até 100%, com autoridades governamentais totalmente hipócritas. Isto permitiria à população saber que seus governantes, especialmente os membros dos poderes Executivo, que deveria pagar a quem de direito, e o Legislativo, que autoriza sua postergação, exibem comportamento altamente hipócrita no trato da coisa pública.

Uma outra medida da hipocrisia legal brasileira pode ser dada pela exigência de que seus cidadãos devem acreditar em suas polícias: elas – as polícias – deveriam garantir a segurança do cidadão que não precisaria usar armas para se defender. A justiça zela para que o cidadão não ande armado e o condena se ele portar arma de fogo. O princípio fundamental atras desta norma é o de que o cidadão deve acreditar que a polícia lhe protegerá. Desta forma, se um cidadão for pego portando arma, um juiz lhe condenará à prisão! A hipocrisia implícita nesta norma legal é a de que, embora você deva acreditar na proteção policial, você será julgado e condenado se não acreditar, por alguém que não acredita e que carrega arma de fogo para sua proteção! Os juízes e membros do Ministério Público lhe condenarão por portar arma de fogo, mas eles próprios, podem andar armados. Você precisa acreditar na proteção policial a você e sua família. Eles, claramente, não acreditam, tanto que têm permissão legal para portar armas. Como o IHOB acima, é possível avaliar um índice equivalente do grau de hipocrisia dos titulares do Judiciário brasileiro.

Um Índice da Hipocrisia Jurídica Brasileira pode ser dado por:

IHJB = (No. de Armas de Membros do Judiciário/No. de Juízes e Promotores do País)*100 

que vai de zero – baixa hipocrisia jurídica – até 100% – autoridades judiciais totalmente hipócritas[1]. Infelizmente, parece que o processo educacional da população brasileira demorará um longo período até que o povo exija mudanças no comportamento de uma grande parte dos membros dos poderes que formam nossa república. Só um novo círculo virtuoso de exigências da população esclarecida nos tirará do atual equilíbrio perverso que tende a manter os membros dos três poderes da nossa república numa situação de altos níveis de hipocrisia, onde a arte de enganar as massas populacionais é a maior força impulsionadora do populismo que reina no país.

[1] Na possível eventualidade do número dentro do parêntese ser maior que a unidade deve-se considerar o valor como unitário

Compartilhe:

A EDUCAÇÃO E O EMPRESARIADO BRASILEIRO

Fernando Curi Peres

Recentemente uma parte expressiva do empresariado brasileiro, medido pela participação de suas empresas no PIB do país, manifestou-se, num abaixo assinado que teve grande divulgação midiática, juntamente com reconhecidos economistas nacionais, sugerindo mudanças na condução das políticas públicas do governo. O documento se referia à angústia nacional derivada da insensibilidade do atual governo, representado por manifestações de desrespeito pelas necessidades da população, de expoentes dos três poderes nacionais – Executivo, Legislativo e Judiciário – a clamores de seus habitantes quanto a ausência de ações e coordenações no enfrentamento da aguda situação que as crises sanitária e econômica estão impondo à população. A iniciativa parece justa e oportuna, mas, acima de tudo e visto numa perspectiva mais ampla, ela permite inferir sobre a insensibilidade daquele importante grupo de elite da sociedade brasileira que tem convivido e, passivamente, tem se omitindo, ao longo de décadas, com a secular situação de crise que assola a educação do país. Será que a louvável mobilização desta importante camada da elite nacional só acontece quando suas perspectivas econômicas são ameaçadas? Onde estão os valores cidadãos deste importante segmento da Nação?

Os testes de avaliação comparativa da performance dos alunos de 15 anos de idade (do PISA – Programme for International Student Assessment) da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e que são relatados a cada três anos, têm mostrado a pobreza relativa do sistema educacional brasileiro entre os 79 países amostrados no último teste – 2018. Nossos jovens têm, sistematicamente, ficado entre os últimos extratos nas três áreas testadas: (i) leitura e expressão; (ii) raciocínio lógico; e (iii) introdução ao conhecimento científico. Embora esta situação já seja conhecida desde muitos anos, poucas iniciativas[1] foram implantadas com o suporte empresarial explícito e efetivo de suas lideranças que, de fato, mostraria o comprometimento dos empresários brasileiros, refletindo sua priorização da educação.

Como bem indicado por Pedro Malan, os determinantes de longo prazo do grau de desenvolvimento da nossa sociedade são e estarão seriamente prejudicados pela deficiente priorização indicada à população pelas nossas lideranças em geral, e pelas empresariais em particular: 

“Que dizer de erros na Educação, que desde o início deste governo teve 4 ministros (se incluída a escolha de Decotelli), 4 ou 5 secretários-gerais no Ministério, 5 secretários de educação básica, 4 chefes do Inep, 3 secretários de educação superior? Com tanta gente competente na área de educação, o Brasil tem, na cúpula desse Ministério tão relevante, há mais de 2 anos e 3 meses, um deserto de ideias. E pensar que se trata de área tão determinante para definir o que seremos ou não seremos no futuro…

Na educação, assim como em outras áreas-chave, nosso truncado desenvolvimento econômico e social é função de investimentos que não fizemos no passado e, não menos importante, de investimentos mal feitos – que fizemos e tanto nos custaram, custam e ainda custarão. Na área de infraestrutura física, infraestrutura humana (educação, saúde) como no combate gradual, mas consistente, à desigualdade de oportunidades, que está na raiz da permanência de miséria e pobreza no País”.[2]

Infelizmente não vimos, ou ouvimos falar de, abaixo assinados e manifestações contundentes dos líderes das diferentes associações empresariais e de representações profissionais alertando para a situação calamitosa em que se encontram nossos sistemas educacionais, especialmente os de primeiro e segundo graus, além da baixa prioridade da sociedade com a importantíssima pré-escola, berço do hardware sobre o qual deverão se implantar todos os demais sistemas.

Prioridade significa buscar objetivos educacionais em primeiro lugar. De outra forma, estaremos sacrificando o desenvolvimento social de longo prazo do país em prol de objetivos de curto prazo. O mundo de nossos filhos e netos pagará pelas políticas e resultados que conseguiremos implantar/alcançar agora. Quando os empresários e demais lideranças do país aceitam a prevalência desta injusta penalização das gerações futuras em prol de benefícios econômicos atuais, eles mostram uma perigosa visão limitada ao curto prazo que, inevitavelmente, custará muito na realização e felicidade de seus descendentes. É fácil à classe empresarial brasileira se auto enganar acreditando que provendo boas escolas particulares para seus filhos e netos garantirá a eles melhores condições de vida no futuro! Esta visão míope os impede de ver que o ambiente em que viverão seus descendentes será tal que a insegurança na convivência social exigirá custos altíssimos para que os privilegiados possam conviver com massas de indivíduos não preparados para sua integração em sociedades cada dia mais exigentes na formação de seus capitais humanos e sociais. Como já acontece em muitos dos ambientes sociais do nosso país, a segurança da própria integridade física das pessoas está constantemente ameaçada, além da ameaça derivada da baixa qualidade dos serviços oferecidos à população. Esta insegurança será aumentada à medida em que sacrificamos nossas gerações futuras, em prol dos resultados de curto prazo que queremos alcançar.    

Nossa tradição cultural ibérica convive, secularmente, com as famílias transferindo para a Igreja e para o Estado a maioria das responsabilidades quanto à educação de seus filhos. E isto acontece, apesar dos estudiosos indicarem que, na educação de jovens, as ações e os valores que caracterizam o ambiente familiar têm um peso de cerca de 80% (oitenta por cento), enquanto o respectivo ambiente e atividades escolares têm os demais 20% (vinte por cento). Esta é uma das principais diferenças culturais entre os povos asiáticos e os ocidentais. Esta característica cultural ajuda a explicar o relativo sucesso das performances dos jovens dos países asiáticos nos exames do PISA da OCDE e no consequente efeito no desenvolvimento atual e futuro de suas economias e sociedades. Um exemplo pode ilustrar como os valores corporativistas de nossa sociedade acabam por prevalecer no desenho de nossas políticas públicas refletindo a verdadeira baixa prioridade implícita nas ações implementadas.

Consta das promessas de campanha do governo federal a alternativa de permitir o “homeschooling” (a família provê a frequentar escolas), alternativa presente em muitos países mais ou menos democráticos. No Brasil, é preciso mudar a legislação para permitir esse tipo de educação para parte de sua juventude. No entanto, adiantando-se às votações no Congresso Nacional, a Secretaria de Educação e o Conselho Estadual de Educação de São Paulo decidiram que, no Estado, as famílias que quiserem educar, elas próprias, os seus filhos terão que os matricular em alguma escola e terão que contratar “professores legalmente habilitados” para lhes ensinar as mesmas matérias exigidas pelos currículos oficiais. Aqui está a pegadinha! A família, mesmo tendo entre seus membros alguém com competência para ensinar determinadas matérias, ou disciplinas aos seus filhos, terá que contratar professores legalmente habilitados. Entre os requisitos para a habilitação legal exige-se que o professor “tenha formação específica na disciplina”. Isto, de fato, mata qualquer tentativa de famílias tentarem ensinar a seus filhos, seja por meio de seus próprios membros ou por pessoas competentes que ela conheça e em quem confie. Aqui está prevalecendo o velho corporativismo de nossa sociedade que, em vez de medir resultados de suas ações cuida somente dos meios para atingi-los. educação de seus filhos, sem que necessitem

 Nos Estados Unidos da América, por exemplo, qualquer família pode decidir educar seus filhos. O estado exige que, no fim dos respectivos períodos escolares, os jovens se submetam a testes e exames em escolas locais especialmente credenciadas para julgarem se o aprendizado foi suficiente. É o que, efetivamente, interessa! É preciso assegurar que o nível de formação exigido dos jovens seja atingido; é completamente irrelevante para o Estado saber quem os ensinou. Esta é uma escolha das famílias. No Brasil, nosso paternalismo ibérico exige que o Estado proteja as famílias escolhendo para eles quem são os professores para seus filhos. Não basta que os alunos aprendam o objeto da disciplina ou matéria; aqui, eles precisam ser escolhidos pela corporação dos professores. A mesma corporação que vai julgar, no fim de cada período letivo, se o jovem aprendeu o suficiente. A julgar pelos resultados dos testes do PISA pode-se constatar que nosso sistema é extremamente deficiente!

(Espesso nevoeiro: Efeitos da pandemia estarão conosco no que resta deste trágico 2021 e ainda em 2022     

Pedro S. Malan, O Estado de S.Paulo, 11 de abril de 2021)

[1] Todos pela Educação, Instituto Alfa e Beto, Instituto Ayrton Senna e Fundação Lemann são exemplos das poucas iniciativas filantrópicas, ou do terceiro setor, que se dedicam a contribuir para melhorar o estoque do capital humano do país, por meio de ações educacionais.

[2] Pedro S. Malan, Espesso nevoeiro: Efeitos da pandemia estarão conosco no que resta deste trágico 2021 e ainda em 2022. O Estado de São Paulo, 11 de abril de 2021, pg. A2

Compartilhe:

CONDOMÍNIO DOS EMPREGADOS DO BRASIL

Fernando Curi Peres

No grande condomínio[1] em que se transformou o país, onde os condôminos – a maioria da população – trabalham duro para manter um privilegiado grupo de empregados, formado pelo funcionalismo público e políticos eleitos, está acontecendo o inverso do que propõe o mais importante dos nossos preceitos constitucionais, que diz que todo o poder deverá ser exercido “em nome do povo”. Quando estes privilegiados destinam mais dos escassos recursos da nação para esta privilegiatura, enquanto importante parte da população padece de enorme penúria por não ter acesso a serviços decentes de educação, saúde e segurança, nossos eleitos mostram enorme insensibilidade às demandas da população, sabendo que a farsa eleitoral se repetirá periodicamente e, acima de tudo, que todo o processo eleitoral está desenhado para manter tudo da mesma forma. Quando a maioria da população se sente ultrajada por um Judiciário que, em conluio com as principais forças do Executivo e do Legislativo, destrói a principal iniciativa de combate à corrupção nas hostes públicas brasileiras, é preciso oferecer à cidadania do país alguma alternativa para lhes garantir um mínimo de esperança no futuro da nação. Não adiantam as inúmeras sugestões de aprimoramento de políticas públicas que as mídias mostram diariamente se, na base da organização social do país estão vícios que impedem, ou desestimulam, os representantes de representar os desejos da população; ao contrário, os eleitos têm todos os estímulos para continuarem a cuidar somente de seus interesses e, ao mesmo tempo, criar novas formas de enganar os eleitores dizendo-lhes que estão trabalhando pelos interesses deles. É preciso que algum líder importante encarne o papel, impopular nos meios políticos, de propor a necessária mudança no sistema eleitoral do Brasil. Somente quem tiver esta coragem estará, atualmente, sendo digno de ser chamado de estadista.

Reconhecendo que cada indivíduo tem seus próprios interesses e age no sentido de alcançar sua realização ou satisfação, para si mesmo e para seus entes queridos, o movimento intelectual europeu dos Séculos XVII e XVIII conhecido como “Iluminismo” sugeriu o sistema de governo de “checks and balances”[2] onde cada um dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – deveria atuar de forma independente, executando suas funções específicas e fiscalizando os outros dois poderes. John Locke, J. J. Rousseau e Montesquieu são nomes intimamente associados ao suporte deste sistema tripartite de poderes. É preciso, no entanto, que as instituições do país sejam desenhadas para garantir o funcionamento harmônico dos poderes. Como foram feitas e adaptadas nossas instituições para cumprir as funções que deveriam desempenhar numa sociedade verdadeiramente democrática? Em nossa visão e ao contrário do que sugeriram os mencionados pensadores, no Brasil as instituições foram criadas/adaptadas para manter os privilégios dos eleitos e das corporações do funcionalismo público.

O Brasil copiou o sistema de governo dos USA, mantendo o presidencialismo como forma de tripular o Executivo Federal. De maneira semelhante, os estados e municípios brasileiros têm seus executivos escolhidos por votação direta da população. O principal problema com este tipo de escolha é que ele facilita o aparecimento de “salvadores da pátria”! O sistema tende a associar às suas eleições a expectativa de que o chefe do executivo eleito transformará o país, estado ou município e oferecerá aos seus habitantes serviços públicos de alta qualidade. A nova vontade política fará, ou provocará, a melhoria geral da qualidade de vida da população, de acordo com a realização das promessas de campanhas do executivo eleito. Em geral, tentam convencer os eleitores que a vontade política do chefe do executivo é condição suficiente para que os cidadãos recebam serviços públicos de alta qualidade. Passadas as eleições, as consequentes frustações são, inevitavelmente, acompanhadas do aumento na descrença dos eleitores nas promessas políticas de campanhas. O parlamentarismo, sistema escolhido por grande quantidade de países ditos desenvolvidos, minimiza este tipo de frustação, com a substituição menos traumática dos chefes dos executivos que assumem tais posições populistas.

O Legislativo, poder que deveria representar os diversos segmentos da população do país, é o que demanda sua mudança mais urgente e fundamental. Os membros dos nossos poderes legislativos conseguiram desvincular os eleitos dos eleitores de forma que deputados federais, estaduais e vereadores não representam, nem precisam representar, nenhum grupo em particular, exceto aqueles carimbados com as marcas de determinadas corporações. A forma que os países civilizados encontraram para forçar os eleitos a, efetivamente, representarem os interesses dos eleitores, foi pelo uso do voto distrital. As populações de cada estado são distribuídas em distritos eleitorais contíguos, cada um com o mesmo número de eleitores. Isto assegura a observância da relação um eleitor/um voto, ao contrário do caso brasileiro onde um voto dos paulistas para a Câmara dos Deputados Federais vale uma pequena fração dos votos de eleitores de estados com baixo índice populacional no peso de sua representação. Além disso, o sistema de voto proporcional, ou de legenda, praticamente impede o eleitor de saber quem seu voto acabou elegendo para a respectiva câmara. Isto é muito interessante para os eleitos, uma vez que eles não precisam prestar contas para seus eleitores – ninguém sabe quem os elegeu – de suas atuações legislativas. Com o voto distrital puro, os eleitores de determinada região elegem um representante que fica conhecido por todos como o representante daquela região ou distrito. Sua população sabe quem foi eleito para representar aquele distrito e pode vigia-lo e reelege-lo, ou não, na próxima eleição. Como já afirmamos em outras publicações, os nossos deputados e vereadores fogem deste tipo de eleição assim como “o diabo foge da cruz”. Esta é, no entanto, a única forma que o mundo civilizado tem de fazer os eleitos considerarem, prioritariamente, os interesses dos eleitores ao invés de seus próprios interesses[3]. É a defesa desta bandeira, ou proposta de aprimoramento eleitoral, que políticos honestos e bem-intencionados precisam ter coragem de assumir. Sem este aprimoramento eleitoral não há, ou não se conhece, forma de fazer os eleitos considerarem, prioritariamente, os interesses dos eleitores, em vez de visarem somente seus interesses!

O Judiciário, juntamente com o Ministério Público forma, no Brasil, um(?) poder perfeitamente adaptado para funcionar em conluio com os outros dois poderes na perversa sustentação da privilegiatura dos eleitos e do funcionalismo público, esta última a categoria na qual os membros deste(?) poder formam parte importante da categoria. Juízes e membros de tribunais, promotores e algumas categorias de auxiliares especializados formam estratos dos mais privilegiados no recebimento de rendas recebidas de instituições governamentais. O acinte é tamanho que, para algumas dessas categorias, uma parte significante dos mencionados altos rendimentos monetários são recebidos como benefícios isentos de taxações. Apesar de seus elevados rendimentos colocarem os funcionários públicos que as recebem no grupo do 1%, ou, de fato, do 0,5%, das mais altas rendas do país, eles pagam impostos, ou tributos, somente sobre uma parte de seus privilegiados ganhos. Como funciona o conluio entre os poderes na manutenção dos privilégios dos políticos eleitos e do funcionalismo público?

 Os membros do Executivo e do Legislativo podem ter e, de fato, têm acesso a diversas formas de corrupção na condução dos negócios públicos. Como os membros eleitos do Legislativo não são identificados pelos eleitores como seus representantes (e, portanto, não devem satisfações a eles, exceto aos membros de corporações bem organizadas, dentre as quais as do funcionalismo público se sobressaem) eles podem usar cargos públicos da administração direta para colocar seus apadrinhados e prepostos, em vez de tripulá-los com indivíduos competentes para a execução da respectiva tarefa. De maneira semelhante, o grande número de empresas estatais dos diferentes níveis de governo – federais, estaduais e municipais – permite aos eleitos indicarem seus prepostos e apadrinhados para um grande número de diretorias das respectivas empresas. Estas indicações têm sido fonte de enorme corrupção, tanto no relacionamento das estatais com empresas privadas quanto na sua própria gestão (é sabidamente conhecido o grau de empreguismo que vigora nas empresas públicas do país, em geral). O Judiciário e o Ministério Público teriam, constitucionalmente, que desempenhar o importante papel desestimulador destas formas de corrupção. Limitações de espaço nos impedem de enumerar os casos de conluio entre membros dos três poderes na manutenção de situações gritantes de impunidades. Recentemente, um prestigiado e altamente considerado jornalista brasileiro publicou um artigo denunciando elementos desta perversa situação no país. No artigo pode-se ler:

“Os ministros (do STF) … perceberam que o Legislativo, de um lado, se pôs de joelhos diante deles – mais de um terço dos seus integrantes tem processos penais nas costas e estão no Congresso para se esconder da polícia; só o STF pode lhes causar problemas, e ninguém ali quer problema. Já sabem, de outro lado, que têm diante de si um Executivo frouxo, derrotado, sem músculos, sem energia e sem cérebro – incapaz de reagir às agressões que recebe o tempo todo dos ministros e incapaz, sobretudo, de defender as convicções dos seus próprios eleitores. O STF, assim, não tem nenhum motivo para mandar menos. É óbvio que só vai mandar mais.”[4]

E, mais adiante, depois de apontar as arbitrariedades e incoerências do mais alto tribunal judiciário do país, o autor mostra que:

“É curioso. O STF diz que Sergio Moro é “suspeito”. E ele mesmo, o STF, não é suspeito de nada? Além de todas as suas outras aberrações, o tribunal vem funcionando, há anos, como um escritório de advocacia para ladrões milionários, sejam eles políticos ou não. E o beneficiado não é apenas o PT, nem de longe – nesse mesmo bonde estão o alto almirantado do PSDB, o centrão mais extremo e tudo aquilo que, de um jeito ou de outro, consegue roubar alguma coisa de algum cofre do governo. A propósito, o ministro Gilmar Mendes, o principal inimigo do juiz Sergio Moro e das investigações antiladroagem da Operação Lava Jato, achou que deveria fazer, sem ninguém lhe pedir, um elogio público aos advogados de defesa de Lula. Ou seja, não ficou contente só em condenar o juiz que condenou Lula – também pisou em cima. Esse é o “garantismo” que existe no STF real; o que se garante, mesmo, é o atendimento dos desejos, ideias e interesses pessoais dos ministros, dos seus amigos e dos amigos dos amigos[5][6].

Com o chamado foro privilegiado o STF ganhou um enorme poder sobre o Legislativo e Executivo e, julgando pelas denúncias de arbitrariedades e defesa de interesses de alguns de seus ministros, as perspectivas parecem sombrias na antevisão de alguma chance de melhoria na situação atual. É difícil pensar na existência de um Judiciário e Ministério Público desempenhando o importante papel que o sistema tripartite de poder exige dele, a menos que alguma forma de legitimação de seu papel seja implementada. A experiência dos USA, de quem copiamos, parcial e seletivamente errada, a organização política, indica que a instituição do Recall[7] poderia trazer alguma legitimação ao sistema de justiça, fazendo seus membros atuarem de acordo com os interesses da população ao invés de atuarem de acordo com os interesses próprios de seus membros.

            Em Economia Política, e em diversas outras áreas das ciências, existe um importante conceito quando se estuda um de seus sistemas: trata-se do conceito de steady state equilibrium (situação estacionária). Se nenhuma nova força entrar, ou alterar, o sistema, ele permanecerá inalterado dinamicamente, ou ao longo do tempo. Ele não se altera no tempo, ou tende a se perpetuar. O sistema de governo de uma nação democrática é dividido nos três poderes mencionados, Executivo, Legislativo e Judiciário que, como mencionado, devem agir de forma independente e cada um atuar conforme as prescrições constitucionais do país. No entanto, a corrupção no Brasil atingiu os seus elementos constituintes de forma que embora a harmonia entre os três poderes tenha sido quebrada, o sistema atingiu um equilíbrio do tipo “steady state” garantido pelo conluio entre as forças da corrupção. Nenhum deles precisa prestar contas à população e podem dividir entre eles e suas corporações agregadas do funcionalismo público, que inclui privilegiados dos três poderes e os políticos eleitos e seus prepostos, o butim de parte importante da arrecadação governamental de impostos, taxas e contribuições. Só uma nova força, agindo sobre o equilíbrio atual do sistema de governança do Brasil, pode alterar esta situação estacionária. A nosso ver, só o clamor da população, expresso por multidões se manifestando nas ruas, poderá forçar a quebra do equilíbrio perverso que se instalou nos poderes de nosso sistema de governo. Acreditamos que o país tem em certos grupos, que incluem suas forças armadas, um importante subgrupo do empresariado nacional (aquele que não participa do conluio com a parte podre dos nossos três poderes) e parte da sua intelectualidade, entre outros, importantes reservas éticas e morais que saberão responder ao clamor popular e quebrar o nefasto equilíbrio que se instalou no seio de algumas das mais importantes instituições do país.     

[1] Estamos usando a figura de linguagem criada por Murilo de Aragão e publicada na página A2 do O Estado de São Paulo de 29/dez, def.2018

[2] Poder de Contrapor, ou existência de três poderes independentes – Executivo, Legislativo e Judiciário – que têm papéis claramente delimitados pela Constituição e onde um deles não interfere nas atribuições dos outros dois, mas é fiscalizado por eles.

[3] A Itália tem um sistema eleitoral onde cerca de 1/3 dos deputados federais são eleitos pelo voto distrital e os outros 2/3 são eleitos pelo voto de legenda. Parece que é coincidência que o sistema político italiano tenha matado a grande iniciativa do Judiciário do país de coibir a corrupção (operação mãos limpas – Mani pulite) tal como o Brasil acabou de fazer com a operação Lava Jato-

[4] 27 de março às 14:42

REVISTA OESTE 26/03/2021 – J. R. Guzzo

[5] Aqui, há uma irônica referência ao apelido de um ministro do STF na lista de propinas da Odebrecht, empresa que admitiu em juízo uma enorme corrupção no seu trato com políticos e com membros do poder judiciário.

[6] 27 de março às 14:42

REVISTA OESTE 26/03/2021 – J. R. Guzzo

 

[7] Quando algum membro do judiciário ou ministério público afronta uma parte significativa da população existe um mecanismo de submissão da posição daquele membro ao escrutínio popular por meio do voto de Recall.

Compartilhe:

OS POLÍTICOS E A SOCIEDADE BRASILEIRA

Fernando Curi Peres

Quando economistas tentam explicar quais são as perspectivas da economia brasileira, nos próximos meses e/ou nos próximos anos, logo surgem as discussões sobre os rumos das decisões políticas no sentido de elas serem mais ou menos populistas. Deve-se notar que a economia é e deve ser totalmente subjugada a decisões políticas. Isto porque o instrumental analítico do economista, que deve estar sempre tentando utilizar o método das ciências, definido no seu sentido mais restrito, não lhe permite escolher objetivos políticos que impliquem na transferência de benefícios e custos às diferentes camadas da população. As decisões que afetam as mudanças nos beneficiários e pagadores de ações de governos devem ser feitas, ou tomadas, pelos políticos que, nas economias liberais, deveriam ser eleitos para representar as populações. Uma vez escolhidos, pelos políticos, os objetivos a serem alcançados pelas ações dos governos, os economistas podem ser chamados para opinar sobre os melhores e mais indicados caminhos a serem seguidos para seu atingimento. As famosas audiências públicas (hearings) dos congressos de países desenvolvidos – para os quais são convidados economistas reconhecidamente capazes – são maneiras de garantir que técnicos sejam ouvidos antes da aprovação de políticas públicas relevantes. As decisões políticas em regimes presidencialistas podem ser, por seu lado, classificadas como de estadistas ou populistas. A diferença entre elas é fundamental.

Os estadistas são políticos que mostram ter, consistentemente, visões e coerências em suas ações, com objetivos sociais claros, tanto os de curto quanto, e principalmente, os de longo prazo. Os populistas, por outro lado, são tipicamente orientados por “marketeiros” que são técnicos ou artistas, com especial instrumental analítico ou sensibilidade, para captar as maneiras como os grupos sociais – eleitores – percebem as imagens e ações dos políticos. Os principais objetivos dos políticos populistas são os de alcançar maiores e mais duradouros poderes, os quais servem a seu proveito próprio ou de seu grupo próximo de apoiadores. Os estadistas se guiam/consultam técnicos competentes em suas respectivas áreas, tais como economistas, administradores, juristas e cientistas políticos, enquanto os populistas ouvem, ou seguem, os marketeiros e/ou comunicadores. O estadista persegue políticas que ele acredita que conduzirão a sociedade a estados da natureza com maior bem-estar social; o populista busca a satisfação dos objetivos de poder e privilégios para os membros de seu grupo, por meio da manutenção do poder político conquistado de qualquer forma possível. O populista diz qualquer coisa que, na sua visão ou na de seus assessores, servirá para melhorar sua imagem e aumentar sua popularidade com os eleitores; o estadista persegue resultados programáticos explicitados e apresentados aos eleitores de forma propositiva. Apesar de se acreditar que as pessoas são racionais na percepção de resultados das políticas públicas, parece que elas podem ser manipuladas, durante longos períodos, por populistas que acenam com promessas irrealistas cujos resultados não são observados no curto e médio prazo.

No Brasil, têm sido observados sinais de que a população quer ver mudanças nas atitudes dos políticos. No entanto, o sistema está desenhado para manter o “status quo” (ou a situação atual) de forma a dificultar mudanças profundas na condução das políticas públicas. Nas eleições gerais de 2018, houve uma alta taxa de renovação eleitoral no Congresso Nacional – Senado Federal e Câmara dos Deputados -, nos legislativos estaduais e nos executivos estaduais e federal. O que mudou na atitude dos membros do Congresso Nacional? E no executivo nacional? Mudaram alguns nomes, mas pelo que pode ser captado nas pesquisas de opinião, o sistema é poderoso o bastante para transformar quase todos os novos eleitos em defensores dos privilégios, dos eleitos e das corporações que os apoiam, a serem mantidos a qualquer custo. Dadas as características do nosso processo eleitoral, as tentações, às quais os eleitos estão sujeitos, são enormes: (i) uma vez eleitos, os políticos podem indicar apadrinhados tanto para cargos bem remunerados no executivo quanto para cargos nas empresas estatais dos diferentes níveis de governo; (ii) os eleitos têm um grande diferencial competitivo eleitoral a seu favor representado pelo fundo partidário que lhes garantem enorme vantagens; (iii) os cargos em estatais e em determinadas esferas do executivo garantem aos eleitos e seus apadrinhados um enorme poder sobre orçamentos que podem ser utilizados para gerar recursos de ações corruptas de difícil controle fiscal por órgãos dos diferentes tipos e níveis de governo. Assim, o sistema está desenhado para absorver os eleitos, mesmo aqueles bem-intencionados que, antes, pretendiam trabalhar para o bem comum.

O sistema liberal de organização republicana da sociedade foi desenhado, no mundo ocidental, de maneira a garantir a atuação dos representantes eleitos no sentido de procurarem a satisfação dos interesses dos eleitores. Por que as pesquisas de opinião públicas estão apontando exatamente o contrário, no Brasil, onde existe uma enorme desconfiança da população – dos eleitores – nas intenções dos políticos eleitos? Uma possível explicação para esta percepção pela população sobre as motivações dos eleitos pode ser mostrada por análises de cientistas políticos que acreditam nas premissas do liberalismo. O liberalismo está fundado em princípios realistas, dos quais um deles é o de que as pessoas têm e, em geral, agem de acordo com seus interesses pessoais, com os de seus entes queridos ou com os de seu grupo apoiador. Eles acreditam que nenhum político é “bonzinho” a ponto de uma vez eleito, passar a ser completamente altruísta e, milagrosamente, esqueça seus interesses pessoais e os de seus entes queridos e se dedique ao atingimento do bem comum. Os liberais acreditam que as pessoas procuram e continuarão a procurar, primeiramente, a satisfação de seus interesses pessoais e os de seus entes queridos. Como conseguir que os políticos eleitos para nos representar defendam os interesses de seus eleitores em vez de defenderem só os seus próprios?

A proposta liberal para o uso do sistema eleitoral de representação política é a mesma que reconhece os mercados como instituições impessoais com regras claras de atuação das suas unidades, onde cada pessoa procura seus interesses, mas a competição entre as pessoas e empresas acabam conduzindo a economia para seu melhor resultado social. De forma semelhante ao que Adam Smith sugeriu para os mercados, onde cada indivíduo tenta realizar seu interesse, o sistema político organizado com três poderes independentes e com regras claras para atuação de cada um deles – a Constituição do País – deveria cuidar para que os empregados dos eleitores, todo o funcionalismo público e os políticos eleitos, trabalhem sobre as ordens de quem os contratou, a população do país. A Constituição tem que ser clara e não pode permitir sua interpretação de acordo com visões políticas conjunturais e, acima de tudo, não pode permitir que cada membro do colegiado encarregado de sua interpretação – o STF – possa implementar sua visão particular. Por seu lado, o sistema eleitoral tem que ser tal que o eleitor saiba o destino de seu voto – quem se beneficiou dele – e, acima de tudo, possa cobrar do eleito a necessária coerência de suas ações com suas proposições programáticas. A única forma que o mundo ocidental conhece para permitir esta correspondência entre as promessas eleitorais dos representantes e suas ações após a eleição é por meio do uso dos chamados distritos eleitorais. Os distritos devem ter o mesmo número de eleitores e serem contíguos. No Brasil, o sistema eleitoral está desenhado de maneira a dificultar, ao máximo, a exigência de prestação de contas pelos eleitos aos seus eleitores. O sistema torna o voto altamente difuso, de forma a dificultar qualquer aproximação entre o eleitor e o eleito!

Em artigos anteriores já mencionamos o fato do nosso sistema eleitoral ser tal que permite que os eleitos não precisem dar satisfação aos eleitores. O problema é mais sério nas eleições para as câmaras de deputados e de vereadores. O sistema foi manipulado de forma que a representação popular dos eleitos corresponde muito pouco com os desejos dos eleitores. Por exemplo, os limites arbitrários no número de deputados eleitos para cada estado distorcem a relação eleitor/eleito. Desta forma, para que um deputado federal seja eleito no estado de São Paulo, é preciso que seu partido tenha recebido um número muitas vezes maior que os correspondentes de estados menos populosos. Mas outras distorções foram introduzidas de forma a não permitir, ou dificultar o controle pela população – pelos eleitores – das ações dos eleitos. Em outras palavras, o eleitor não sabe, na grande maioria dos casos, para quem seu voto contribuiu para que fosse eleito. Desta forma, não há como cobrar dos eleitos as responsabilidades, ou coerência, nas suas propostas programáticas. Os eleitos passam a ser donos dos seus mandatos sem precisar prestar contas aos seus eleitores acerca das ações, ou posições, que toma em seu nome.  

 Na página de opiniões do O Estado de São Paulo do último dia 15 de março (p. A3) pode-se ler que “há muitas maneiras de distorcer a expressão da vontade popular nas urnas. Em concreto, a reforma eleitoral em discussão na Câmara tem dois temas que afetam diretamente a capacidade de o eleitor definir livremente quem serão seus representantes:” as coligações partidárias e o distritão. Desta forma, cada vez mais os deputados federais estão tentando dificultar, por meio da difusão da relação eleitor-eleito, o controle das ações dos eleitos pela população. Assim, os deputados são a cada dia mais independentes dos eleitores, tornando-se mais donos dos seus próprios mandatos. Com a volta das coligações partidárias serão viabilizados os partidos nanicos, cuja principal razão de ser é seu acesso aos recursos do fundo eleitoral. Os eleitos poderão desconsiderar, cada vez mais, o perigo de ter seu mandato revogado na próxima eleição!  

Compartilhe:

CONHECIMENTO HUMANO: Ciência e Ideologias

Elaine Mendonça Barros, 

Jose Roberto Canziani 

Vania Di Addario Guimarães

Fernando Curi Peres

      Artigo para discussão  submetido para publicação e apresentação no Terceiro IMAST da Faculdade de Ciências Agrárias e Tecnológicas (FCAT) da UNESP para quem estão sendo transferidos todos os direitos de publicação

I.             Introdução: como podemos estudar o conhecimento humano e algumas de suas implicações.

Muitos profissionais e mesmo estudiosos de determinadas disciplinas ditas científicas e as de outras áreas do conhecimento – artes, religiões, éticas e de escolhas morais, ideológicas ou de opções políticas, de história e de outras formas – usam, em publicações, argumentações, discussões e em manifestações diversas, de forma mais ou menos indiscriminadas, elementos de mais de uma delas, sem precisar suas limitações metodológicas ou pressuposições básicas. Por má fé, ignorância ou falta displicente da devida atenção, o uso indevido dos métodos de análise ou limitações associadas aos conhecimentos derivados das diferentes formas analíticas apontadas acima, os indivíduos são levados a sofismar. O sofista se utiliza de resultados derivados das diferentes áreas do conhecimento sem distingui-los no sentido de suas limitações nas diversas formas de argumentação ou proposição. Quando são utilizados ou propostos com má fé, o acatamento da(s) proposição(ões) resultante(s) de sofismas pode levar a perdas sociais no sentido de infligir em outro(s) solução(ões) inconveniente(s). O presente artigo é uma introdução ao estudo das formas, ou tipos, de conhecimento humano, com a clara intensão de ajudar o leitor a fugir do uso de sofismas em suas argumentações e levá-lo a refletir sobre o papel do conhecimento científico no contexto atual.

Estudar as diferentes formas do conhecimento humano é o campo da Epistemologia. Esta pode ter a conotação de conhecimento, no sentido que associamos a conhecer uma pessoa mais intimamente ou a conhecer, saber e ter certa familiaridade com um processo, ou método qualquer, além de também incluir o conhecimento de linguagens de algum dos diferentes ramos das ciências e/ou saber utilizar o processo lógico utilizado nas respectivas demonstrações ou análises. Algumas angústias são identificadas no comportamento humano sobre as quais, infelizmente, não conhecemos a origem, ou razão de ser. Luc Ferry, um brilhante filósofo contemporâneo e ex-Ministro da Educação da França, sugere em seu interessante livro introdutório, ou motivacional, para o, ou do, estudo da Filosofia[1], que a angústia do tipo primária, impulsiva ou genética das pessoas, no sentido de elas não se conformarem com o caráter passageiro, temporário ou não eterno de nossos sentimentos de felicidade – opinião comungada pela maioria dos humanos, mostrado no provérbio Inglês segundo o qual “all that is good must come to an end” (tudo que é bom acaba!), e no verso da brasileiríssima canção “Tristeza não tem fim, felicidade sim; a felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor, brilha tranquila depois de leve oscila e cai como uma lágrima de amor , causa uma profunda necessidade dos indivíduos encontrarem soluções mais ou menos lógicas, promessas ou evidências de que algum tipo de felicidade eterna seja possível, pelo menos para alguns.

Um importante filósofo do século passado, Bertrand Russel, matemático, epistemologista e físico do mais alto nível, nascido nos anos setenta do Século XIX, e altamente produtivo desde o final daquele século até meados da segunda metade do Século XX, considera como um dos problemas mais fundamentais da filosofia[2] as dificuldades envolvidas com a demonstração da existência objetiva das coisas, dos fatos, situações ou eventos observados ou percebidos por nossos sentidos. Esta controvérsia, como sugerida por Russel, tem raízes profundas no problema do conhecimento humano.

Desde o famoso “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo; ou Penso, logo sou), uma frase de autoria do filósofo e matemático francês René Descartes, tido como um dos principais pensadores que lançaram as bases do que é hoje aceito como o método universal das ciências, vê-se que o problema da existência objetiva do que é percebido por nossos sentidos ainda não foi resolvido. De fato, estudando as imensas possibilidades de interferências na nossa percepção dos fatos do mundo físico ou virtual, a única certeza que temos, ou podemos ter, sobre a realidade objetiva deles é de que algo está estimulando nosso pensamento![3] Reconhecendo a limitação derivada do não endereçamento deste tópico neste trabalho, trataremos, a seguir, de uma proposta de classificação dos diversos tipos de conhecimento humano, tentando mostrar sua importância e algumas características de cada tipo.

São inúmeras as tentativas anteriores de discutir o conhecimento humano. Bertrand Russel, por exemplo, publicou um importante livro intitulado “Human Knowledge: it’s scope and limits” (O Conhecimento Humano: suas possibilidades e limites)[4] em que discute, profundamente, inúmeros conceitos e exigências de precisão em linguagem no entendimento dos avanços, até aquela data, dos conhecimentos das ciências, especialmente as da natureza, ou do mundo físico. Sir Karl Popper, um dos mais brilhantes analistas da epistemologia e membro destacado da importante corrente de pensamento identificada como a Escola de Viena, publicou inúmeros trabalhos[5], muito rigorosos, sobre o conhecimento humano. Nossa pretensão é muito menor, porque queremos somente introduzir os leitores não versados em Epistemologia em uma primeira incursão no vastíssimo mundo de sua abrangência.

            Um brilhante ganhador do Prêmio Nobel, Gunnar Myrdal, sueco e com formação jurídica inicial, mas que se transformou num gigante do pensamento sociológico e científico, em geral, ao analisar o problema do negro nos Estados Unidos, diz que o máximo que se consegue atingir em termos de objetividade em ciências sociais está associado à explicitação anterior dos “valores e pressuposições” feitos ou defendidos pelo pesquisador. Concordando com ele, precisamos esclarecer que os autores acreditam na superioridade da visão liberal sobre as organizações político-social e econômica das nações. Fica o aviso para aqueles que querem saber detalhes sobre as coisas que os autores acreditam, e os valores morais/éticos que têm procurado seguir e transmitir a seus familiares e entes queridos e, por consequência, a seus alunos.    

II.            As Formas ou tipos de Conhecimento Humano.

II.1 Os Reflexos Condicionados

Existem muitas formas de conhecimento humano, as quais podem ser classificáveis em categorias mais ou menos intuitivas. A mais elementar, nos parece, é o tipo de conhecimento derivado da capacidade humana (comum a muitas outras espécies do reino animal) de identificar regularidades em eventos repetitivos e, consequentemente, desenvolver alguma forma de expectativa – medo, euforia, esperança e outros sentimentos – ou reação, resultante de um processo de aprendizagem em geral, que é conhecido como o condicionamento de reflexos. O fenômeno foi muito bem estudado por Ivan Pavlov e é conhecido como Reflexos Condicionados de Pavlov. Esta é – ou deve ser – a forma mais primária da construção do conhecimento pelas pessoas. Uma grande quantidade de animais superiores – aqui incluídos quase todos os mamíferos – têm a capacidade de desenvolver este tipo de conhecimento. Se alguém coloca um veneno, que mata o animal que dele se alimenta, verá morrer um, ou alguns, dos animais visados; no entanto, muitas espécies daqueles animais aprendem a associar o consumo do veneno, por mais atraente que ele seja, à morte, como consequência. O que se vê é a perda da eficácia do veneno, porque os animais que se quer extinguir logo aprendem que não devem consumí-lo. Na espécie humana, esta forma de conhecimento deve existir, pelo menos, desde os tempos das aparições dos primeiros hominídeos.

II.2 A Primeira Grande Revolução Humana: A Revolução da Conciência.

Uma importante distinção ou característica da espécie humana, no entanto, é sua capacidade de criar mitos ou símbolos e, a partir deles, criar instituições agregadoras, o que lhe permite formar grupos muito maiores do que os pequenos grupos capazes de formar bandos de todas as outras espécies que têm cooperação entre seus membros. O Homo Sapiens (a espécie humana cuja descendência predominou, quase exclusivamente, entre os hominídeos, desde algumas poucas dezenas de milhares de anos) eliminou as outras espécies de hominídeos (do gênero Homo) muito provavelmente pelo que se chamou a grande “revolução da conciência”. Esta revolução concedeu ao Homo Sapiens uma enorme vantagem competitiva na luta pela sobrevivência das espécies. Um exemplo do reino animal ajuda no entendimento deste fenômeno.

Há enorme vantagem da espécie dos leões sobre outros grandes gatos (felinos) porque os leões conseguem ter muita cooperaração entre os elementos de um bando. A cooperação lhes permite muito maior eficiência em suas caçadas para conseguir alimentos para o bando. Ao contrário do guepardo ou do leopardo, que são grandes gatos solitários, praticamente só se juntando em pares na época do acasalamento, os leões dominam seus territórios e tendem a eliminar deles os demais carnívoros, facilitando sua vida de caçadores. Uma regra geral, no entanto, é que os animais cooperadores tendem a apresentar comportamento altamente territorialista, eliminando dele os  membros de outros bandos, até mesmo aqueles da sua própria espécie. Além disso, uma característica marcante dos bandos que cooperam parece ser o desenvolvimento, entre seus membros, de um forte sentido de hierarquia. Em geral, estas sociedades apresentam comportamentos de submissão e privilegiatura muito desenvolvidas.    

Paleontologistas e outros estudiosos da pre-história humana sugerem que os primeiros agrupamentos de humanídeos, que incluiam o Homo Sapiens, entre outras espécies, só podiam ter um tamanho muito limitado de indivíduos vivendo em grupos hierarquisados e cooperantes porque eles precisavam se conhecer, mais ou menos intimamente, por suas características específicas de aparência visual, cheiro e idiossincrasias comportamentais que os identificavam como pertencentes ao grupo ou clã. E, como acontece com as inúmeras outras espécies animais, os primatas primitivos, independente da espécie a que pertencessem, eram altamente territorialistas. Mesmo indivíduos da mesma espécie eram (de fato, são, em muitos mamíferos) rechaçados, mortos ou imediatamente expulsos do convívio com o bando quando identificados como não pertencentes a aquele grupo específico. Por exigência deste conhecimento íntimo entre os membros do clã, eles nunca devem ter sido formados por um número muito maior do que uma centena de indivíduos no mesmo bando[6]. Esta limitação só foi superada quando aconteceu a chamada primeira revolução humana ou a grande revolução da conciência humana. Por algum fenômento evolutivo ainda não conhecido, a espécie Homo Sapiens desenvolveu a capacidade de criar “mitos” ou “símbolos”, que incluiam o reconhecimento na natureza de elementos associados a manifestações de seres superiores ou entidades supervisoras que ditavam normas para os membros do bando, especialmente permitindo a criação de instituições cujos objetivos e indicações comportamentais deveriam ser comungados e obedecidos por todos. Por exemplo, muitas tribos que habitavam determinadas regiões ou vales específicos se juntavam, periodicamente, para aumentar sua eficiência, ou eficácia, nas caçadas, porque eram exigidos muitos indivíduos na empreitada. As caçadas a bandos de mamutes, ou de outros animais de grande porte, são muitas vezes citadas quando se procura a cooperação de muitos guerreiros para produzir os necessários efeitos. Outras vezes, os mitos ou símbolos eram simples criações de indivíduos pertencentes ao bando, os quais serviam para desenvolver nos seus membros um sentido de pertinência ou identificação de compartilhamento de crença. Noutras, eram adorações de elementos da natureza, como o Sol, a Lua ou os raios, como manifestações sobrenaturais que deveriam ser reverenciadas pelos membros do grupo.

O compartilhamento de crença em determinados mitos ou símbolos – ligados às diversas religiosidades, instituições de controle social, identidade geográfica e muito do que hoje chamamos ideologias, etc – permitiu aos bandos de Homo Sapiens crescerem indefinidamente, com a maioria dos membros do grupo que reconhecia o mito ou símbolo comungando a crença comum que lhes dava a característica de pertinência, ou de pertencer ao grande bando. Assim, ainda a título de exemplo, pertencer às comunidades massons, mussulmana, judaica, cristã de determinada seita, bem como ser cidadão de determinados países e etc, dá a algumas pessoas um sentido de pertinência a grupos muito maiores do que sua convivência íntima poderia permitir. Estes símbolos ou mitos desempenham importantes papéis na resultante coalisão social cooperativa; de fato, a história está cheia de casos em que as pessoas doam a própria vida, ou a de seus filhos ou entes queridos, para ajudar na integridade ameaçada de alguns desses grandes grupos. Os santos da Igreja Católica, as mães nazistas encaminhando seus filhos para a guerra já perdida, pilotos japoneses fazendo ataques suicidas na defesa de seu país e as famílias muçulmanas fundamentalistas que cedem seus filhos para detonar bombas amarradas ao próprio corpo são exemplos, não únicos, da aderência das pessoas àqueles mitos ou símbolos. A cooperação resultante pode ser decisiva na subsistência das respectivas instituições.

II.3 As Verdades Reveladas    

Desde cedo, ou pelo menos após a grande revolução da conciência humana no desenvolvimento das sociedades, acredita-se que o conceito de espíritos ou de entidades supervisoras, ou mesmo criadoras, estavam acima dos desígnios humanos e que elas teriam, muitas vezes, ascenção, ou poderes, sobre os agrupamentos ou sobre todos os homens. As evidências antropológicas e os estudos de sociedades primitivas permitem assegurar que, nos mais diversos grupos sociais, sempre havia algum, ou alguns, indivíduo(s) do grupo que detinha(m) privilégios de comunicação com aquelas entidades superiores ou, pelo menos, eram percebidos como capazes de melhor interpretar os desejos ou ditames das diversas deidades, espíritos diversos, inclusive dos antepassados, que precisavam ser atendidos pelos membros do grupo social. Eles desempenhavam o papel de ligação, ou religação, com aqueles entes; daí o conceito inicial de religião, ou religação.[7] O conhecimento comunicado pelos indivíduos privilegiados a todos os membros do grupo social é genericamente conhecido como conhecimento, ou verdade, revelado. As tábuas dos mandamentos são um exemplo de uma revelação feita pelo Deus dos cristãos a Moises.

II.4 As Habilidades de Ofícios

Simultaneamente, ou mesmo nos períodos anteriores, ao longo da saga do desenvolvimento da espécie humana, à medida que as duas formas anteriores – (i) condicionamento de reflexos e (ii) verdades reveladas -, continuavam seu curso, de forma diferenciada em cada grupo social, os indivíduos aprendiam, também, em ritmos e formas diferentes, a manusear ferramentas e processos que consideravam úteis a seus objetivos de sobrevivência e melhoria das qualidades de suas vidas. Estes conhecimentos úteis evoluíram sistematicamente nos agrupamentos gerando categorias conhecidas como as diversas “habilidades de ofícios”, ou profissões . Em períodos mais recentes da história, a proximidade dos indivívuos que se dedicavam a um mesmo ofício levou-os a criar organizações destinadas a garantir a qualidade dos serviços prestados e, às vezes, o monopólio do respectivo mercado. Isto levou, na Europa, ao surgimento de associações gremiais especiais chamadas guildas. A  transmissão das respectivas habilidades entre indivíduos, em geral dos mais velhos para os mais novos e, geralmente, feito sob a supervisão das “guildas”, está na raiz dos processos educacionais do Ocidente, os quais englobaram ou coexistiram com as transmissões sistematizadas dos conhecimentos das verdades reveladas. Elas tiveram importantes papéis políticos e no desenvolvimento do sistema universitário do continente europeu. Por outro lado, elas ajudaram a provocar reações de importantes pensadores que estabeleceram os princípios fundamentais sobre os quais se assenta o ideal chamado de visão liberal, de enorme influência nas sociedades ocidentais. É bastante conhecida a afirmação de Adams Smith de que ‘quando dois ou mais indivíduos de um mesmo ofício se juntam para discutir seu negócio é o público que, em geral, sai perdendo.’

II.5 O Conhecimento Artístico

O conhecimento artístico é, também, uma forma extremamente importante de conhecimento existente desde os primórdios da humanidade. Pode-se dizer que o artista é alguém que consegue, de alguma forma – pela palavra (poeta e/ou escritor), pela dança, pela pintura, pela capacidade de representação em geral, pelo cinema, pela música, pela habilidade de pintar, fotografar, esculpir, desenhar, pela apresentação de fatos escolhidos (na parte artística do marketing) e muitas outras – sensibilizar o público objeto da sua comunicação. A comunicação artística toca nos nossos sentimentos mais profundos, ou íntimos, fazendo dela um importante elemento de expansão de crenças, mitos ou símbolos. Por nossas respostas às mais diferentes formas de comunicação artística, reagimos aceitando ou rejeitando proposições argumentativas de maneira complementar, ou alternativa, à aceitação de argumentos que consideramos lógicos (ou necessários e, até, suficientes) ou razoáveis. As artes ou expressões artísticas existem desde os mais remotos tempos da humanidade. Estudos paleontológicos mostram que as artes existiram muito antes do surgimento da escrita. Deve-se notar que algumas formas de comunicação artística estão, também, incorporadas às cargas genéticas de outras especies animais: os cantos dos pássaros, a beleza da plumagem dos machos de algumas espéciess animais e os ritos de danças e exibições dos de outras espécies na atração das fêmeas são indicações desta incorporação genética. Os próprios bebês humanos mostram, muitas vezes, uma impressionante capacidade de acompanhar com seus corpos a cadência de ritmos de diversos tipos de sons. A comunicação artística deve ser vista, assim, como uma forma primária de comunicação que deve ter existido desde antes da revolução da consciência.

A Criação de Adão”, impressionante obra artística da Capela Sistina de Roma, retratada na Figura 1, mostra uma importante característica dos conhecimentos ocidentais durante a Renascença, na Europa. Segundo aquela visão, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança; ao mesmo tempo o sentido de religação da religião pode ser visto como fortemente sugerido no quadro de Michelangelo.  Pode-se dizer que Deus está criando Adão mas, ao mesmo tempo, o braço estendido de Adão sugere uma forte ligação, ou religação da criatura com o criador. Na época, as verdades

Figura 1 A Criação de Adão por Michelangelo Buonarroti.

Capela Sistina do Vaticano, Roma, Itália.

 

 

reveladas por meio de livros sagrados – a Bíblia para os cristãos; o Corão para os muçulmanos, o Torá para os judeus – eram as principais fontes do conhecimento na Europa. Coincidentemente com o término desta época, ou idade, alguns pensadores ocidentais, tais como Machiaveli, Francis Bacon, René Descartes e David Hume, entre outros, mostraram uma então perigosa disposição de utilizar o conceito cristão do livre arbítrio – chamado de razão humana – no entendimento das coisas do mundo, sem partir das, ou fundamentar-se nas, verdades reveladas. Esta liberdade foi, magistralmente, utilizada por dois “gigantes” do pensamento ocidental, Galileu Galilei e Isaac Newton, que ajudaram a assentar as bases para o que, atualmente, conhecemos como o método das ciências e contribuíram com o tremendo desenvolvimento do conhecimento humano formulado a partir do chamado Iluminismo.

II.6 Algumas Formas Mais Elaboradas de Conhecimento Humano   

Além dos quatro tipos mencionados – (i) reflexos condicionados, (ii) habilidades de ofícios, (iii) verdades reveladas e (iv) conhecientos artísticos – , indicados no Quadro II – 1, existem os conhecimentos considerados mais avançados e desenvolvidos pela criatividade humana, mais ou menos incorporados no comportamento dos indivíduos ou grupos, e que são analisados como princípios diversos de razoabilidades tais como os éticos ou morais, os do Direito, da Psicoanálise, da Filosofia, da Política e das Teologias, entre outros, os quais carregam a característica fundamental de explicitar escolhas, ou valores culturais, capazes de orientar a criação ou o reconhecimento das normas comportamentais humanas. São formas de conhecimento que se prestam a indicar “como o mundo deve ser e/ou como as pessoas devem agir”. Esta pretenção vai muito além do escopo da ciência a qual só pode pretender “explicar o mundo como ele é”. Como se verá a seguir, o método da ciência só se presta ao conhecimento de como são – sua descrição e suas relações causais – os fenômenos, situações ou estados atuais e eventos do mundo; ele, consequentemente, não serve, ou não pode pretender ser competente para escolher como os fenômenos devem ser. O conjunto destes conhecimentos, exemplificados na última linha do Quadro II.2, como os estudos da Ética e Moral, da Filosofia – especialmente da Metafísica –, do Direito, da Psicoanálise, dos “ismos” da opções políticas – Socialismo, Liberalismo, Anarquismo, etc –, das teologias, dos ocultismos e da Astrrologia, etc, refletem escolhas culturais mais ou menos influenciadas pelos quatro tipos mais primários de conhecimentos mencionados e elaborados pelo complexo sistema nervo-cerebral analítico dos humanos.   

Embora utilizando o nome genérico de “científico” alguns conhecimentos, mais ou menos sistematizados, que foram sendo desenvolvidos desde o Iluminismo, acabaram por convergir para um conceito hoje universalmente aceito de que a ciência se restringe aos conhecimentos gerados pelo, ou enquadráveis no, método conhecido como o “método das ciências”. É um subconjunto muito restrito do conhecimento humano que tem pretensões de ser objetivo, no sentido da descrição de fatos, estados atuais ou eventos, feitos por observadores não diretamente envolvidos neles. Como sugerido acima e, embora muitas questões filosóficas e lógicas não resolvidas sejam inerentes àquela pretenção ‒ como a existência do fato ou evento de forma independente do observador ou à pressuposiçao de que é possível sua descrição sem considerar os valores e normas que afetam o observador – ela continua sendo perseguida pelos cientístas de todo mundo e funciona como um “pano de fundo” para os que pretendem aplicar o “método das ciências”.

Algumas considerações precisam ser feitas quando se intenta classificar as formas de conhecimento utilizadas pelas pessoas. Nossa percepção das coisas ou fenômenos do mundo são, provavelmente, o resultado da interação de – ou das – diferentes formas de conhecimento mencionadas, acrescentadas de elaborações mentais complexas que incorporam elementos não necessariamente ligados à realidade efetivamente percebida. Entre as diferentes formas de comunicação humana, possivelmente o conhecimento artístico é o mais importante no conjunto que forma a experiência, ou acervo do conhecimento experimental, das pessoas. Isto porque, como foi dito, a comunicação artística é a que mais diretamente impressiona nossos sentidos. E, os sentimentos ou percepções intimas, são os que as pessoas aceitam com mais facilidade, uma vez que não impõem barreiras concientes, ou filtros, à sua aceitação. Acredita-se que as pessoas são dóceis às percepções – ou sentimentos – a elas comunicadas com o apelo da beleza, da solidariedade, da grandeza de sentimentos e de “toques na alma” expressos de inúmeras maneiras pela comunicação artística. Há quem sugira que o forte uso da comunicação artística nos ensinamentos religiosos estejam, consciente ou inconscientemente, se utilizando desta propriedade para a disseminação de suas normas e valores.  

É provável que nossas crenças reflitam complexas interações entre muitos dos tipos de conhecimentos descritos no Quadro II.2. Nas sociedades mais primitivas, acredita-se que as quatro primeiras formas de conhecimento – (i) reflexos condicionados, (ii) verdades reveladas, (iii) as habilidades de ofícios e as (iv) comunicações artísticas, – sejam as principais caracterizadoras das resperctivas culturas. Deve-se notar que, devido a estes tipos de conhecimentos, devem estar incluídas aí as tradições e valores éticos e morais daqueles grupos sociais. Nas sociedades mais complexas – onde a diferenciação do trabalho atinge limites alcançados com altas especializações dos seus indivíduos e que correspondem à existência de níveis elevados dos respectivos estoques de conhecimento e de uma sistematização sofisticada de categorias destes conhecimentos, alguns estão mais desenvolvidos ou elaborados e os indivíduos que os detém sempre foram reconhecidos como altamente prestigiosos nos seus grupos sociais, tais como os padres, pastores, rabinos, imãs, advogados, médicos, psicoanalistas, filósofos e artistas, por exemplo. Estes prestígios derivam de conhecimentos que refletem as normas comportamentais ou utilidades de qualidade de vida – deveres, obrigações, habilidades, sensibilidades e direitos – das pessoas que  compõem os grupos sociais. O outro tipo de conhecimento que também tem associado prestígio àqueles que o detém é o chamado “conhecimento científico”. Alguns desses profissionais conseguiram compatilizar seus conhecimentos do tipo habilidades de ofício com os derivados do método científico gerando profissões altamente reconhecidas por toda a sociedade. É o caso, por exemplo, dos profissionais da saúde, dos engenheiros e de alguns filósofos que acompanham o desenvolvimento das ciências, como os Epistemologistas.

II.7. O Método da Ciência

O conhecimento que a literatura vem chamando de “conhecimento científico” pode ser precisamente identificado, ou assim classificado, por satisfazer um conjunto de  critérios específicos. O sub-grupo restrito de conhecimento que pode ser classificado como conhecimento científico – e aqui estamos tratando, fundamentalmente, do enfoque positivista[8] que pressupõe a capacidade humana de descrever fenômenos, ou fatos, de maneira objetiva, ou como observadores não envolvidos ou, ainda, “como observadores de fora”[9] – que satisfaz as, ou pode ser apresentado como resultado das, seguintes fases mostradas no Quadro II.3.1 [uma continuação do Quadro II.3]: (i) uma identificação precisa do fato, situação ou fenômeno, que se explica ou que se quer explicar; (ii) o uso de uma teoria já explicitada, a ampliação, ou mesmo, o desenvolvimento de uma teoria alternativa, de maneira que seja explicado, nas suas relações de causa e efeito, o fato, situação ou fenômeno de forma lógica ou consistente com o comportamento de outros entes, situações ou fenômenos do mundo físico; (iii) a derivação lógica, a partir da teoria, de hipótese(s) que precisa(m) ser observada(s) como critério de possível negação da teoria proposta; (iv) o teste estatístico da hipótese escolhida que resultou da derivação anterior; e (v) o aumento, ou diminuição, da intensidade da crença na teoria que a não-negação, ou a negação, da hipótese deve ocasionar.

Uma teoria, para ser considerada científica, precisa permitir a produção de hipóteses testáveis, para que possa ser verificada ou, mais precisamente, não negada, já que a Estatística só pode estimar as probabilidades de um conjunto de dados ser diferente de outros dados, cujas variações consideramos resultado do acaso, ou puramente aleatórias. Uma outra exigência que ela precisa apresentar é a de completa aderência a encadeamentos lógicos de causas e efeitos. É necessário deixar claro que, embora existam muitos tipos de lógica, a teoria proposta, ou utilizada, precisa seguir, rigorozamente, os requisitos daquela lógica. A lógica aristotélica, derivada do pensamento silogista, inicialmente atribuido à correspondente escola de pensamento grego e consistente com sua formalização a partir da matemática, tem sido o instrumento mais utilizado nas análises da consistência dos correspondentes modelos de representação dos fatos ou fenômentos do mundo físico. Por isso, diz-se que a matemática é a linguagem da ciência. Uma enorme contribuição aos diversos ramos da ciência tem sido dada pelos matemáticos que têm, constantemente, aperfeiçoado este tipo de instrumento do conhecimento, permitindo a melhor compreensão e explicitação de complexos mecanismos da natureza, os quais estão indo muito além do que a intuição humana consegue entender.

Mesmo sem conseguir prever, ou perceber, intuitivamente, certos fenômenos, ou estados da natureza, a matemática permite ao cientísta generalizar fenômenos de maneiras que nossa intuição dificilmente consegue vislumbrar. Desta forma, faz sentido a afirmação de Bertrand Russel, segundo a qual ‘o escopo ou objeto de todos os ramos da ciência é sua transformação na Física’. Quando se observam as mais avançadas publicações das ciências, pode-se evidenciar o acerto da indicação daquele grande pensador, feita nas primeiras décadas do Século XX; de fato e por exemplo, um olhar nos periódicos Managenment Sciense, no Journal of Mathematical Psicology ou na Econométrica nos faz pensar, antes de tudo, que estamos diante de publicações da área de Física. Os procedimentos dos respectivos pesquisadores utilizam passos metodológicos muito semelhantes aos utilizados pelos cientístas da área de Físíca. Neste sentido, uma área das ciências sociais tem se destacado em seu intento de utilizar a formalização matemática na explicitação de suas teorias: trata-se da Economia! Especialmente desde que Von Neumann e Morgenstern[10], o primeiro um dos expoentes modernos da área de Matemática, especialmente da chamada Teoria dos Jogos, estabeleceu, lógica e rigorosamente, os fundamentos da Economia moderna, junto com seu colega do Instituto de Altos Estudos da Universidade de Princeton, as bases da Microeconomia contemporânea. Elas foram seguidas por Paul Samuelson que, poucos anos depois, também publicou seu aclamado Foundation of Economic Analysis[11].

A Figura II.3.1 mostra, esquematicamente, as cinco fases do método científico. Muita contribuição importante à ciencia é dada por pessoas que esclarecem somente parte, ou partes, das mencionadas fases; na Física, por exemplo, existem inúmeros pesquisadores que deram contribuições importantíssimas ao desenvolverem modelos – ou teorias – que só posteriormente foram testadas e que ajudam na montagem do enorme edifício do conhecimento científico atual. Por outro lado, igualmente importante foram os trabalhos dos pesquisadores que testaram hipóteses derivadas das teorias propostas e puderam, assim, aumentar ou reduzir a confiança das pessoas naquelas teorias. As teorias são aceitas ou, mais precisamente, são não negadas, até que, ou enquanto, a engenhosidade humana consiga confrontar hipóteses delas logicamente derivadas com dados do mundo físico (e os expressos como reações mentais) e elas continuam passando, ou falhando na sua verificação empírica, nos testes estatísticos. Quando não passam mais nos testes, elas devem ser ampliadas ou substituídas por teorias mais poderosas ou abrangentes e capazes de explicar os novos dados assim coletados.

Um exemplo, amplamente discutido na literatura, ilustra a necessidade de ampliação ou substituição de teorias que, apesar de resistirem por muito tempo aos testes das hipóteses delas derivadas, é dado pelos princípios – teoria – de Isaac Newton que tratam de fenômenos explicados pela chamada força da gravidade. Nos mais de três séculos decorridos desde a publicação do seminal livro daquele autor, praticamente todos os testes estatísticos que utilizavam os princípios Newtonianos aceitavam – ou, mais precisamente, não negavam sua validade. Somente com a sofisticação mais recente do instrumental físico-químico disponível para pesquisadores, foi possível determinar que, embora as leis de Newton funcionem muito bem quando trabalhamos com fenômenos observáveis com as mensurações de valores típicos das escalas humanas, – do milímetro até os milhões de quilómetros, do miligrama até as milhões de toneladas e de milisegundos até milhares de anos, por exemplo – elas não funcionam quando consideramos as dimensões sub-atômicas ou as estelares. As teorias necessárias para explicar alguns fatos observáveis no mundo físico, especialmente os dos mundos sub-atômico e estelar tiveram que ser reformuladas como feito por gênios mais modernos do pensamento científico, tais como Albert Einstein, Max Planck, Werner Heisenberg, Stephen Hawking e Ilya Prigogine, entre outros.    

A outra forma de negação de uma teoria é conseguida quando é possivel mostrar sua inconsistência lógica interna; em outras palavras, o método da ciência não aceita o sofisma! A matemática tem sido um importante instrumento no apontamento deste tipo de inconsistência que, às vezes, os limites de nossa intuição nos impede de perceber. Novamente, as exigências da Física, de equacionamento, ou da expressão lógica-algébrica, das suas teorias, mostra o caminho que os diversos ramos das ciências devem procurar seguir no escopo ou procura por seu aprimoramento. Além da Economia, outros ramos das ciências sociais têm utilizado os encadeamentos lógico-matemáticos que suas teorias sugerem existir, de forma surpreendente para os leitores não avisados: entre os inúmeros grupos que estão utilizando o método nas chamadas ciências sociais, a Sociologia, por exemplo, tem em uma importante corrente de pensamento, privilegiada pelo grupo da Universidade de Chicago e liderado por outro gigante de sua área – James S. Coleman – permitido o uso do método científico como descrito nos cinco passos do Quadro II.3.1. Por outro lado, a importante corrente de pensamento alemã, que é fundada na visão histórica dos agrupamentos humanos – o do historicismo alemão – foi rigorosamente demonstrado, por Sir Karl Popper, não satisfazer os encadeamentos lógicos exigidos de teorias científicas[12]. Desta forma, a unificação metodológica do pensamento científico vai sendo conseguida, por meio da incorporação gradativa das diversas áreas das ciências sociais.

III. Avanços do Conhecimento Científico desde o Iluminismo

Na visão dos autores, o eixo fundamental do desenvolvimento do conhecimento científico está associado à competitividade – countervailing power, ou poder da contraposição ‒ na luta pela prevalença do mais forte. Desde Machiavelli, e claramente explicitado e compreendido por David Hume, Rosseau e Montesquieu, entre outros no Iluminismo, os indivíduos passaram a ser vistos como seres desejantes, ou que procuravam, acima de tudo, satisfazer seus interesses e os de seus entes queridos. Esta visão contrastava com a visão religiosa predominante na idade média, segundo a qual as pessoas existiam para exaltar a Deus, cumprir seus desígnios e aprimorar as virtudes de cavalheirismo e alinhamento aos destinos superiores da Igreja e da aristocracia. A verdade revelada deixou de ser a única fonte do conhecimento humano, cedendo lugar à razão, permitida pelo fato de Deus ter dado ao homem o livre arbítrio[13].

Como brilhantemente mostrado por Albert O. Hirschman em “The Passions and the Interests: political arguments for capitalism before its triumph” (As Paixões e os Interesses: argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo), a aceitação generalizada de que o interesse individual move as pessoas permitiu o entendimento do papel fundamental que o comércio tinha, ou podia ter, na redução das relações tirânicas entre os povos e no correspondente ganho de bem estar para as populações. A compreensão do efeito econômico das vantagens comparativas e do comércio permitiram a Adams Smith publicar seu seminal The Welth of the Nations (A Riqueza das Nações), marco fundamental da construção de teorias sociais científicas. Um outro gigante do pensamento humano expandiu para todos os seres vivos as características do poder de contraposição.     Cerca de meio século após a publicação do trabalho de Adams Smith, Charlles Darwing publicou seu “Sobre a Origem das Espécies” que generalizou para todos os seres vivos o que A. Smith mostrou ser válido para a humanidade. Ao mesmo tempo, a Física continuava a expandir o conhecimento sobre o funcionamento do mundo físico em geral, basicamente assentado nos trabalhos de dois grandes pensadores da área, Galileu Galilei e Isaac Newton. Um outro grande passo no aprimoramento do método da ciência foi dado pelo avanço da Estatística Experimental e da Estatística em geral, que permitiu o teste das hipóteses, tanto nas áreas das ciências físicas quanto nas da ciências sociais. Desta forma, passando por Pasteur, Mendel, Einstein e outros gigantes do pensamento científico, este tipo de conhecimento foi se aperfeiçoando até atingirmos algumas das fronteiras atuais que vão muito além do que nossa intuição sugere.

A humanidade aprendeu, por processos culturais que, ao longo dos milênios pode, ou não, ter sido incorporados à sua carga genética, que a cooperação pode vantajosamente substituir a competição em inúmeras relações entre os indivíduos. Na produção científica, em particular, e na produção do conhecimento humano, em geral, a cooperação tem desempenhado papel de destaque. Em inúmeras outras áreas – militares e econômicas, por exemplo – algumas atitudes cooperativas têm, também, substituido os impulsos genéticos de competição que caracterizam a espécia humana. 

IV. Implicações ou conclusões   

Todos os conhecimentos listados na base da Figura II.2 são do tipo prescritivo ou normativo. Todos se destinam a aperfeiçoar a ação humana nas suas relações entre pessoas, instituições e as demais coisas do mundo. São, portanto ideológicos! Não são científicos. Como visto, o conhecimento científico não se presta, como corolário do método utilizado na sua obtenção, a indicar formas prescritivas ou normativas de comportamento humano. Como no problema típico de algumas ciências, de achar o máximo de alguma função definida sujeita a restrições claramente explicitadas, o conhecimento científico pode ser utilizado como restrição ao atingimento de determinados pontos extremos – máximo ou mínimo – que podem ser do tipo prescritivo ou normativo. O papel de explicitar as restrições, preferencialmente quantificando-as, é a principal contribuição que a ciência pode dar à humanidade nas escolhas que as pessoas e os grupos sociais precisam fazer.

É devido à limitação intrínseca aos conhecimentos derivados do método científico que Hayek nos ensina que os detentores eleitos de cargos públicos devem fazer as escolhas políticas dos objetivos a serem alcançados, mas devem deixar aos cientistas a forma ou os caminhos a serem seguidos para seu atingimento. De fato, em democracias mais maduras são corriqueiras as audiências públicas, nos congressos e em áreas dos poderes executivos, para as quais cientistas reconhecidos são convidados para indicar os prós e contras da implementação de caminhos alternativos para que sejam alcançados os objetivos específicos das diferentes políticas propostas.

Embora a democracia brasileira não tenha demonstrado, ainda, o amadurecimento desejável que permita a inclusão rotineira de cientistas na implementação dos caminhos para alcançar objetivos políticos, é fundamental que a Universidade coloque o conhecimento gerado à disposição da socidadee e, ao mesmo tempo, interaja cada vez mais com a comunidade científica internacional. Nesse sentido, a Faculdade de Ciências Agrárias e Tecnológicas (FCAT) da Unesp transformou o evento que realizava anualmente, em evento internacional que passou a se chamar International Meeting of Agrarian Science and Technology – IMAST. No IMAST realizado em 2018, além da publicação dos anais do evento que já eram tradicionais, a FCAT passou a publicar um livro com capítulos redigidos pelo seu corpo docente (em parceria ou não com outros pesquisadores).  A  referida publicação, disponívem em http://www.culturaacademica.com.br/catalogo/imast-2018/ elevou a outro patamar o evento realizado até então. Ele abre espaço para a divulgação das linhas de pesquisa existentes na Unesp/FCAT e possibilita o amadurecimento da sociedade quanto ao potencial de geração de conhecimento científico disponível na universidade pública.

No intuito de colocar o conhecimento à disposição da sociedade, para o 3º. IMAST, a FCAT traz seu segundo livro, em dois volumes. Do primeiro volume, constam os capítulos nas linhas de pesquisas do Departamento de Produção Vegetal da FCAT e, do segundo volume, linhas de pesquisa do Departamento de Produção Animal. O primeiro, portanto, é o volume composto por capitulos que abordam o solo tanto física como quimicamente e as tecnologias voltadas a aumentar a eficiência de aplicação dos chamados insumos modernos e da produção nas diferentes espécies vegetais de interese econômico.  O segundo volume, que iniciamos com o presente capítulo, seguirá com um assunto que se insere em ciência social (Economia, mais precisamente Microeconomia). Trata-se de uma contribuição para a compreensão do consumidor de produtos aos quais pesquisadores de ciências agrárias se dedicam. Na sequência, são oito capítulos  que tratam de problemas na produção animal. Abordam, com o método científico, problemas de saúde, reprodução e alimentação em frangos, bovinos e peixes.

[1] Ferry, Luc. Aprender a Viver: filosofia para os novos tempos. (Tradução de Vera Lúcia dos Reis) Rio de Janeiro: Objetiva, 20017

[2] Russel, Bertrand. The Problems of Philosophy. Mineola, N.Y. Dover Publications, Inc., 1999

[3] Os “daltônicos” veem determinadas coisas com uma coloração diferente da que os não daltônicos percebem; pelas leis da Ótica, indivíduos colocados em pontos de observação diferentes veem formas diferentes. Qual a cor verdadeira dos objetos percebidos? É preciso ter em conta que é relativamente recente, na história humana, o reconhecimento desta “doença”; quantas outras serão descobertas? Qual a forma verdadeira dos objetos que percebemos? Estes são exemplos mencionados por B. Russel quando coloca o problema da existência objetiva dos fatos que percebemos!

[4] Tradução livre de Russel, Bertrand. Human Knowledge: it’s scope and limits. Forge Village, Mass.: Murray Printing Co., 1948

[5][5] Ver, por exemplo, Popper, Sir Karl R. Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária. (Tradução de Milton Amado) Belo Horizonte: Ed. Ita, 1975

[6] Ver Harari, N. Yuval. Sapiens. Uma breve história da humanidade. (Tradução de Janaína Marcoantonio) Porto Alegre: L&PM. 2016

[7] A wikipedia traz a seguinte consideração [acessada em 01/10/2016], acerca de uma das possíveis origens do termo religião: “Modern scholars such as Tom Harpur and Joseph Campbell favor the derivation from ligare “bind, connect”, probably from a prefixed re-ligare, i.e. re (again) + ligare or “to reconnect”, which was made prominent by St. Augustine, following the interpretation of Lactantius.. In The Pagan Christ: Recovering the Lost Light. Toronto. Thomas Allen, 2004. ISBN 0-88762-145-7 and In The Power of Myth, with Bill Moyers, ed. Betty Sue Flowers, New York, Anchor Books, 1991.ISBN 0-385-41886-8”.

 

[8] Estamos tratando basicamente do enfoque identificado com o chamado “Positivismo Lógico” como adotado por Karl Popper.

[9] Hans Kelsen. A Teoria Pura do Direito. ….

[10]   Von Neumann, John and Morgenstern, Oskar. Theory of Games and Economic Behavior. Princeton University Press, 1944

[11] Samuelson, Paul A. Foundation of Economic Analysis. Harvard University Press.1947

[12] Ver Popper, Sir Karl. A Miséria do Historicismo.

[13] Machiavelli. O Principe

Compartilhe:

O BRASIL E A ELEIÇÃO NOS USA II

No primeiro artigo em que falamos da recente eleição americana, enfatizamos a diferença na representatividade e consequente (i)legitimidade do nosso processo eleitoral. Dissemos que a única maneira que o mundo conhece de submeter os políticos à vontade da população – dos eleitores – é pela realização de eleições distritais, nas quais o eleitor escolhe seu representante e sabe em quem votou, e/ou elegeu, e pode acompanhar sua escolha e tirar, ou não, o eleito desta condição na próxima eleição. Desta forma, o voto distrital torna-se condição sine qua non para que os políticos representem, realmente, os interesses dos eleitores e não seus próprios interesses, como acontece atualmente no Brasil. Além disso, foi enfatizada a necessidade de fazer nossos Judiciário e Ministério Público estarem sujeitos ao recall – ou ao voto de permanência – para que sua legitimidade vá além de simplesmente passar em um concurso que lhes garante total independência da vontade da população. Falamos, ainda, da perversa simbiose entre a gestão de empresas públicas que coexiste, no país, com um sistema eleitoral que permite o eleito perseguir seus próprios interesses levando aquelas gestões ao que Elena Landau mostrou como:

“O apetite dos políticos é insaciável, e o governo se utiliza disso como moeda de troca. Não depende da área de atuação. É da natureza de uma empresa pública ser abusada pela má política. Só resolve privatizando”[1].

Neste artigo, falaremos sobre o importante impacto geopolítico que a eleição de Joe Biden deverá significar para o mundo.

Com a queda do Muro de Berlin, em 1989, o planeta assistiu o desmoronamento de um experimento de 70 anos do chamado socialismo real. Como peças de dominó, as estruturas econômicas dos países do socialismo real, caíram, uma após outra, dando lugar a economias de mercado, ou capitalistas. Com a hegemonia do capitalismo, chegou-se a falar no “fim da história” como a consequência inevitável do processo. Passados mais de 30 (trinta) anos, pode-se questionar o que a história está mostrando ao mundo como o seu novo sentido.

O capitalismo, ou a economia de mercado, tornou-se hegemônico. Parece que o mundo finalmente entendeu que a forma capitalista de organizar e gerir a produção leva à maior criação de riquezas para as sociedades. Atualmente, só três países no mundo usam formas não capitalistas de gestão de suas economias: Cuba, Coreia do Norte e Venezuela são estas três exceções e se apegam à gestão dos fatores de produção pelo estado, o socialismo. Estão, todas as três, literalmente, na fome. A qualidade de vida de suas populações é péssima e deixar os paraísos comunistas parece ser a maior preocupação de suas populações que fogem, às levas, para países capitalistas vizinhos. Levas de fugitivos estão, sempre, tentando deixar aqueles países e ganhar refúgio em economias de mercado próximas. Uma interessante reportagem do O Estado de São Paulo de 03/02/2021 mostra uma entrevista de Sonia Racy com o cientista político Murilo de Aragão, na qual o entrevistado relata um fato altamente ilustrativo de como mesmo países politicamente geridos por partidos comunistas absorveram as leis dos mercados. Aquele analista político diz na entrevista:

“O pragmatismo se impõe sobre os fatos e as crenças. Uma vez, meu filho Tiago foi com um grupo à China e, numa palestra que assistiram, na Juventude Comunista do PC Chinês, alguém disse: “Vocês sabem por que a América do Sul não dá certo? É porque vocês não respeitam o mercado!” Os mais esquerdistas, na sala, ficaram horrorizados. O conferencista explicou: “Nós respeitamos o mercado, produzimos o que ele quer”. Esse é o pragmatismo que nós deveríamos ter.” [2]

Muito tem sido dito sobre a capacidade do capitalismo de incorporar conquistas sociais e modernizar-se. O capitalismo selvagem, como descrito por Karl Marx, deixou de existir há muito tempo, ou só existe em economias marginais. No entanto, é relativamente nova a visão de sociedades capitalistas geridas por partidos comunistas ou por formas autocráticas de organizações políticas. A China e o Vietnam são exemplos marcantes desta nova forma de organização político-econômica. Nelas, a economia é gerida por empresas privadas, mas com um altíssimo grau de controle sobre toda a sociedade por partidos comunistas fortes e detentores de grande força de repressão e regulamentação social. Rússia e Cingapura, por outro lado, mostram ditaduras, ou pseudo-ditaduras tradicionais, nas quais as economias são geridas de acordo com as leis dos mercados, mas o poder político é exercido por ditadores ou pseudo ditadores. Existe um grande número de países sendo geridos autocraticamente por diferentes formas de ditaduras políticas que usam a propriedade privada e as relações de mercado como forma de garantir a produção de riquezas. Além dos já mencionados, pode-se apontar a Hungria, a Turquia, a Indonésia e inúmeros outros. O próprio Ex-Presidente Trump dos USA e seu mimetizador e seguidor mor do nosso país, manifestavam sistematicamente sua admiração por estas formas autocráticas de governo e declaram sua tendência de copiar atos dos ditadores destas nações.

O aclamado economista de origem Sérvia, Branko Milanovic, em um livro recente intitulado “Capitalism, Alone: The Future of the System That Rules the World[3], 2019, Harvard University Press, reconheceu a hegemonia do capitalismo no mundo contemporâneo e classificou os países em dois importantes grupos que, provavelmente, tenderão a produzir uma polarização semelhante à que o socialismo real versus capitalismo desempenhou na extinta guerra fria. Segundo este brilhante autor, a nova geopolítica está – ou estará – sendo formada por dois grupos de países que ele denominou de “capitalistas meritocráticos”, de um lado, e “capitalistas políticos”, de outro. A diferença entre os dois blocos está na gestão política das respectivas sociedades. Nos países capitalistas meritocráticos, a gestão política da sociedade está associada aos valores liberais que fundamentam, ou legitimizam, o poder político na manifestação dos cidadãos, explicitada pelo voto distrital no qual os eleitores controlam os eleitos e os mantém em seus cargos, ou não, em processos eleitorais frequentes. Nos países classificados como capitalistas políticos, o exercício do poder político é feito por um partido – na maioria das vezes pelo partido comunista – ou por ditadores, ou pseudo ditadores, que controlam processos eleitorais não legítimos, ou viesados, na tentativa de sua legitimação forçada. Estes dois blocos provavelmente dividirão o mundo contemporâneo com vantagens e desvantagens para cada membro dos dois grupos.

Os países que formam o grupo dos capitalistas políticos têm vantagens gerenciais em termos de rapidez e facilidade nas suas tomadas de decisões estratégicas. Por outro lado, Branko Milanovic identifica neste grupo uma tendência intrínseca ao aparecimento e desenvolvimento de processos de corrupção. Não há como eliminar esta tendência ao aparecimento de corrupção e, por mais que seu combate seja pregado pelas diferentes mídias, os países deste bloco não têm como reduzi-la sem incorrer em arbitrariedades e injustiças no seu combate. A corrupção é intrínseca e não se conhece métodos de combate-la sem utilizar formas reconhecidas de injustiças no seu controle. Em geral, estes regimes mostram formas exemplares de combate a corrupção, sacrificando “bodes expiatórios” para serem exemplos, embora na sua apuração sabe-se que elementos corporativos e de pertencimento a certos subgrupos estejam sempre presentes nos respectivos processos. Os países do grupo do capitalismo meritocrático têm, pelo seu lado, as vantagens do funcionamento reconhecido de sociedades liberais e a auto regulação liberal funciona como um freio à corrupção.

Nosso país experimentou, durante parte do período que foi dominado pelo Lulo-Petismo, um exemplo de como funciona o capitalismo político no Brasil. O partido que dominou o país escolheu os ganhadores no desenvolvimento do que foram chamados os “campeões nacionais”, líderes empresariais escolhidos para receber privilégios e vantagens econômicas governamentais e ganhar poder de concorrência internacional. O resultado, como não poderia ser diferente, foi a institucionalização de um altíssimo grau de corrupção na economia.  

Os países classificados como capitalistas meritocráticos têm economias que funcionam segundo regras, ou normas, conhecidas e nas quais as unidades produtivas – empresas – competem. Só as mais eficientes subsistem naqueles ambientes competitivos e as respectivas sociedades têm mecanismos que garantem que regras competitivas sejam seguidas, reduzindo o poder das grandes corporações prejudicarem os cidadãos por meio do desenvolvimento de estruturas não competitivas, monopolistas, monopcionistas ou de outras formas de competições imperfeitas. Em países que têm tradição de funcionamento meritocrático de suas empresas, abundam exemplos de grupos que são forçados a se subdividir em maiores números de menores empresas, visando proteger suas populações de grandes poderes derivados de corporações com altas concentrações em seus mercados.    

O mundo do capitalismo meritocrático, por se organizar segundo os princípios do liberalismo político/econômico, tende a ter nações com regimes estáveis, com instituições permanentes, devido à legitimidade de sua tripulação ou ocupação, e têm, correspondentemente, mecanismos de autocorreção de eventuais desvios no seu funcionamento. A reeleição de Trump, nos USA, foi, desta forma, rechaçada pela maioria da população do país quando ele tentou aprofundar seu desrespeito pelas instituições. A liderança do mundo do capitalismo meritocrático deverá voltar a ser exercida por aquele país e Joe Biden já deu inequívocos sinais de que vai voltar a desempenhar este importante papel durante seu mandato na Casa Branca. Temos, no Brasil, um órfão de pseudo ditador que perdeu, com Trump, seu norte ideológico. Sorte nossa!   


 

 

[1] Landau, Eliana “Pau que nasce torto”. O Estado de São Paulo, 05/fev./21, p.B3

[2] “O mundo político funciona no modo crise”. Cenários com Sonia Racy. O Estado de São Paulo, 3/fev. de 2021, p.B5

[3] “Capitalismo Hegemônico: o futuro do sistema que regula o mundo”.

Compartilhe: