CONDOMÍNIO DOS EMPREGADOS DO BRASIL

4.7
(19)

Fernando Curi Peres

No grande condomínio[1] em que se transformou o país, onde os condôminos – a maioria da população – trabalham duro para manter um privilegiado grupo de empregados, formado pelo funcionalismo público e políticos eleitos, está acontecendo o inverso do que propõe o mais importante dos nossos preceitos constitucionais, que diz que todo o poder deverá ser exercido “em nome do povo”. Quando estes privilegiados destinam mais dos escassos recursos da nação para esta privilegiatura, enquanto importante parte da população padece de enorme penúria por não ter acesso a serviços decentes de educação, saúde e segurança, nossos eleitos mostram enorme insensibilidade às demandas da população, sabendo que a farsa eleitoral se repetirá periodicamente e, acima de tudo, que todo o processo eleitoral está desenhado para manter tudo da mesma forma. Quando a maioria da população se sente ultrajada por um Judiciário que, em conluio com as principais forças do Executivo e do Legislativo, destrói a principal iniciativa de combate à corrupção nas hostes públicas brasileiras, é preciso oferecer à cidadania do país alguma alternativa para lhes garantir um mínimo de esperança no futuro da nação. Não adiantam as inúmeras sugestões de aprimoramento de políticas públicas que as mídias mostram diariamente se, na base da organização social do país estão vícios que impedem, ou desestimulam, os representantes de representar os desejos da população; ao contrário, os eleitos têm todos os estímulos para continuarem a cuidar somente de seus interesses e, ao mesmo tempo, criar novas formas de enganar os eleitores dizendo-lhes que estão trabalhando pelos interesses deles. É preciso que algum líder importante encarne o papel, impopular nos meios políticos, de propor a necessária mudança no sistema eleitoral do Brasil. Somente quem tiver esta coragem estará, atualmente, sendo digno de ser chamado de estadista.

Reconhecendo que cada indivíduo tem seus próprios interesses e age no sentido de alcançar sua realização ou satisfação, para si mesmo e para seus entes queridos, o movimento intelectual europeu dos Séculos XVII e XVIII conhecido como “Iluminismo” sugeriu o sistema de governo de “checks and balances”[2] onde cada um dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – deveria atuar de forma independente, executando suas funções específicas e fiscalizando os outros dois poderes. John Locke, J. J. Rousseau e Montesquieu são nomes intimamente associados ao suporte deste sistema tripartite de poderes. É preciso, no entanto, que as instituições do país sejam desenhadas para garantir o funcionamento harmônico dos poderes. Como foram feitas e adaptadas nossas instituições para cumprir as funções que deveriam desempenhar numa sociedade verdadeiramente democrática? Em nossa visão e ao contrário do que sugeriram os mencionados pensadores, no Brasil as instituições foram criadas/adaptadas para manter os privilégios dos eleitos e das corporações do funcionalismo público.

O Brasil copiou o sistema de governo dos USA, mantendo o presidencialismo como forma de tripular o Executivo Federal. De maneira semelhante, os estados e municípios brasileiros têm seus executivos escolhidos por votação direta da população. O principal problema com este tipo de escolha é que ele facilita o aparecimento de “salvadores da pátria”! O sistema tende a associar às suas eleições a expectativa de que o chefe do executivo eleito transformará o país, estado ou município e oferecerá aos seus habitantes serviços públicos de alta qualidade. A nova vontade política fará, ou provocará, a melhoria geral da qualidade de vida da população, de acordo com a realização das promessas de campanhas do executivo eleito. Em geral, tentam convencer os eleitores que a vontade política do chefe do executivo é condição suficiente para que os cidadãos recebam serviços públicos de alta qualidade. Passadas as eleições, as consequentes frustações são, inevitavelmente, acompanhadas do aumento na descrença dos eleitores nas promessas políticas de campanhas. O parlamentarismo, sistema escolhido por grande quantidade de países ditos desenvolvidos, minimiza este tipo de frustação, com a substituição menos traumática dos chefes dos executivos que assumem tais posições populistas.

O Legislativo, poder que deveria representar os diversos segmentos da população do país, é o que demanda sua mudança mais urgente e fundamental. Os membros dos nossos poderes legislativos conseguiram desvincular os eleitos dos eleitores de forma que deputados federais, estaduais e vereadores não representam, nem precisam representar, nenhum grupo em particular, exceto aqueles carimbados com as marcas de determinadas corporações. A forma que os países civilizados encontraram para forçar os eleitos a, efetivamente, representarem os interesses dos eleitores, foi pelo uso do voto distrital. As populações de cada estado são distribuídas em distritos eleitorais contíguos, cada um com o mesmo número de eleitores. Isto assegura a observância da relação um eleitor/um voto, ao contrário do caso brasileiro onde um voto dos paulistas para a Câmara dos Deputados Federais vale uma pequena fração dos votos de eleitores de estados com baixo índice populacional no peso de sua representação. Além disso, o sistema de voto proporcional, ou de legenda, praticamente impede o eleitor de saber quem seu voto acabou elegendo para a respectiva câmara. Isto é muito interessante para os eleitos, uma vez que eles não precisam prestar contas para seus eleitores – ninguém sabe quem os elegeu – de suas atuações legislativas. Com o voto distrital puro, os eleitores de determinada região elegem um representante que fica conhecido por todos como o representante daquela região ou distrito. Sua população sabe quem foi eleito para representar aquele distrito e pode vigia-lo e reelege-lo, ou não, na próxima eleição. Como já afirmamos em outras publicações, os nossos deputados e vereadores fogem deste tipo de eleição assim como “o diabo foge da cruz”. Esta é, no entanto, a única forma que o mundo civilizado tem de fazer os eleitos considerarem, prioritariamente, os interesses dos eleitores ao invés de seus próprios interesses[3]. É a defesa desta bandeira, ou proposta de aprimoramento eleitoral, que políticos honestos e bem-intencionados precisam ter coragem de assumir. Sem este aprimoramento eleitoral não há, ou não se conhece, forma de fazer os eleitos considerarem, prioritariamente, os interesses dos eleitores, em vez de visarem somente seus interesses!

O Judiciário, juntamente com o Ministério Público forma, no Brasil, um(?) poder perfeitamente adaptado para funcionar em conluio com os outros dois poderes na perversa sustentação da privilegiatura dos eleitos e do funcionalismo público, esta última a categoria na qual os membros deste(?) poder formam parte importante da categoria. Juízes e membros de tribunais, promotores e algumas categorias de auxiliares especializados formam estratos dos mais privilegiados no recebimento de rendas recebidas de instituições governamentais. O acinte é tamanho que, para algumas dessas categorias, uma parte significante dos mencionados altos rendimentos monetários são recebidos como benefícios isentos de taxações. Apesar de seus elevados rendimentos colocarem os funcionários públicos que as recebem no grupo do 1%, ou, de fato, do 0,5%, das mais altas rendas do país, eles pagam impostos, ou tributos, somente sobre uma parte de seus privilegiados ganhos. Como funciona o conluio entre os poderes na manutenção dos privilégios dos políticos eleitos e do funcionalismo público?

 Os membros do Executivo e do Legislativo podem ter e, de fato, têm acesso a diversas formas de corrupção na condução dos negócios públicos. Como os membros eleitos do Legislativo não são identificados pelos eleitores como seus representantes (e, portanto, não devem satisfações a eles, exceto aos membros de corporações bem organizadas, dentre as quais as do funcionalismo público se sobressaem) eles podem usar cargos públicos da administração direta para colocar seus apadrinhados e prepostos, em vez de tripulá-los com indivíduos competentes para a execução da respectiva tarefa. De maneira semelhante, o grande número de empresas estatais dos diferentes níveis de governo – federais, estaduais e municipais – permite aos eleitos indicarem seus prepostos e apadrinhados para um grande número de diretorias das respectivas empresas. Estas indicações têm sido fonte de enorme corrupção, tanto no relacionamento das estatais com empresas privadas quanto na sua própria gestão (é sabidamente conhecido o grau de empreguismo que vigora nas empresas públicas do país, em geral). O Judiciário e o Ministério Público teriam, constitucionalmente, que desempenhar o importante papel desestimulador destas formas de corrupção. Limitações de espaço nos impedem de enumerar os casos de conluio entre membros dos três poderes na manutenção de situações gritantes de impunidades. Recentemente, um prestigiado e altamente considerado jornalista brasileiro publicou um artigo denunciando elementos desta perversa situação no país. No artigo pode-se ler:

“Os ministros (do STF) … perceberam que o Legislativo, de um lado, se pôs de joelhos diante deles – mais de um terço dos seus integrantes tem processos penais nas costas e estão no Congresso para se esconder da polícia; só o STF pode lhes causar problemas, e ninguém ali quer problema. Já sabem, de outro lado, que têm diante de si um Executivo frouxo, derrotado, sem músculos, sem energia e sem cérebro – incapaz de reagir às agressões que recebe o tempo todo dos ministros e incapaz, sobretudo, de defender as convicções dos seus próprios eleitores. O STF, assim, não tem nenhum motivo para mandar menos. É óbvio que só vai mandar mais.”[4]

E, mais adiante, depois de apontar as arbitrariedades e incoerências do mais alto tribunal judiciário do país, o autor mostra que:

“É curioso. O STF diz que Sergio Moro é “suspeito”. E ele mesmo, o STF, não é suspeito de nada? Além de todas as suas outras aberrações, o tribunal vem funcionando, há anos, como um escritório de advocacia para ladrões milionários, sejam eles políticos ou não. E o beneficiado não é apenas o PT, nem de longe – nesse mesmo bonde estão o alto almirantado do PSDB, o centrão mais extremo e tudo aquilo que, de um jeito ou de outro, consegue roubar alguma coisa de algum cofre do governo. A propósito, o ministro Gilmar Mendes, o principal inimigo do juiz Sergio Moro e das investigações antiladroagem da Operação Lava Jato, achou que deveria fazer, sem ninguém lhe pedir, um elogio público aos advogados de defesa de Lula. Ou seja, não ficou contente só em condenar o juiz que condenou Lula – também pisou em cima. Esse é o “garantismo” que existe no STF real; o que se garante, mesmo, é o atendimento dos desejos, ideias e interesses pessoais dos ministros, dos seus amigos e dos amigos dos amigos[5][6].

Com o chamado foro privilegiado o STF ganhou um enorme poder sobre o Legislativo e Executivo e, julgando pelas denúncias de arbitrariedades e defesa de interesses de alguns de seus ministros, as perspectivas parecem sombrias na antevisão de alguma chance de melhoria na situação atual. É difícil pensar na existência de um Judiciário e Ministério Público desempenhando o importante papel que o sistema tripartite de poder exige dele, a menos que alguma forma de legitimação de seu papel seja implementada. A experiência dos USA, de quem copiamos, parcial e seletivamente errada, a organização política, indica que a instituição do Recall[7] poderia trazer alguma legitimação ao sistema de justiça, fazendo seus membros atuarem de acordo com os interesses da população ao invés de atuarem de acordo com os interesses próprios de seus membros.

            Em Economia Política, e em diversas outras áreas das ciências, existe um importante conceito quando se estuda um de seus sistemas: trata-se do conceito de steady state equilibrium (situação estacionária). Se nenhuma nova força entrar, ou alterar, o sistema, ele permanecerá inalterado dinamicamente, ou ao longo do tempo. Ele não se altera no tempo, ou tende a se perpetuar. O sistema de governo de uma nação democrática é dividido nos três poderes mencionados, Executivo, Legislativo e Judiciário que, como mencionado, devem agir de forma independente e cada um atuar conforme as prescrições constitucionais do país. No entanto, a corrupção no Brasil atingiu os seus elementos constituintes de forma que embora a harmonia entre os três poderes tenha sido quebrada, o sistema atingiu um equilíbrio do tipo “steady state” garantido pelo conluio entre as forças da corrupção. Nenhum deles precisa prestar contas à população e podem dividir entre eles e suas corporações agregadas do funcionalismo público, que inclui privilegiados dos três poderes e os políticos eleitos e seus prepostos, o butim de parte importante da arrecadação governamental de impostos, taxas e contribuições. Só uma nova força, agindo sobre o equilíbrio atual do sistema de governança do Brasil, pode alterar esta situação estacionária. A nosso ver, só o clamor da população, expresso por multidões se manifestando nas ruas, poderá forçar a quebra do equilíbrio perverso que se instalou nos poderes de nosso sistema de governo. Acreditamos que o país tem em certos grupos, que incluem suas forças armadas, um importante subgrupo do empresariado nacional (aquele que não participa do conluio com a parte podre dos nossos três poderes) e parte da sua intelectualidade, entre outros, importantes reservas éticas e morais que saberão responder ao clamor popular e quebrar o nefasto equilíbrio que se instalou no seio de algumas das mais importantes instituições do país.     

[1] Estamos usando a figura de linguagem criada por Murilo de Aragão e publicada na página A2 do O Estado de São Paulo de 29/dez, def.2018

[2] Poder de Contrapor, ou existência de três poderes independentes – Executivo, Legislativo e Judiciário – que têm papéis claramente delimitados pela Constituição e onde um deles não interfere nas atribuições dos outros dois, mas é fiscalizado por eles.

[3] A Itália tem um sistema eleitoral onde cerca de 1/3 dos deputados federais são eleitos pelo voto distrital e os outros 2/3 são eleitos pelo voto de legenda. Parece que é coincidência que o sistema político italiano tenha matado a grande iniciativa do Judiciário do país de coibir a corrupção (operação mãos limpas – Mani pulite) tal como o Brasil acabou de fazer com a operação Lava Jato-

[4] 27 de março às 14:42

REVISTA OESTE 26/03/2021 – J. R. Guzzo

[5] Aqui, há uma irônica referência ao apelido de um ministro do STF na lista de propinas da Odebrecht, empresa que admitiu em juízo uma enorme corrupção no seu trato com políticos e com membros do poder judiciário.

[6] 27 de março às 14:42

REVISTA OESTE 26/03/2021 – J. R. Guzzo

 

[7] Quando algum membro do judiciário ou ministério público afronta uma parte significativa da população existe um mecanismo de submissão da posição daquele membro ao escrutínio popular por meio do voto de Recall.

How useful was this post?

Click on a star to rate it!

Average rating 4.7 / 5. Vote count: 19

No votes so far! Be the first to rate this post.

We are sorry that this post was not useful for you!

Let us improve this post!

Tell us how we can improve this post?

Compartilhe:

Leave a Comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *