UM SISTEMA POLÍTICO FUNDADO EM COMPORTAMENTOS HIPÓCRITAS

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Fernando Curi Peres

A hipocrisia é definida como o ato de esconder a verdadeira identidade, ou os verdadeiros objetivos, de uma pessoa, por meio de posturas opostas àquelas apresentadas como as suas. São os moralistas de fachada que, sempre que podem evitar as consequências sociais de seus atos, exibem suas atitudes íntimas altamente contrárias à moral socialmente aceita; são os que posam de altruístas quando, de fato, estão buscando benefícios para si próprios ou para seus entes próximos; são os que se apresentam como desinteressados quanto aos resultados de determinadas ações, mas que, de fato, são os beneficiários finais daquelas ações. Hipócritas são, enfim, todos os que posam de bom caráter quando, por detrás de sua fachada, escondem atitudes e crenças que são altamente prejudiciais aos grupos aos quais pertencem, ou a pessoas às quais deveriam servir. Os populistas são hipócritas eficientes no convencimento de grandes massas! Sua habilidade e carisma são canalizados no sentido de convencer grandes grupos de pessoas na defesa de objetivos que juram perseguir, mas que, de fato, são grandes mentiras estrategicamente pensadas para enganar os bons sentimentos das massas. As bandeiras dos populistas são as principais causas de frustações das massas populacionais fanaticamente conduzidas para o atingimento de ideais utópicos ou não possíveis de realização prática.    

A hipocrisia é um tipo de comportamento facilmente encontrado em meios políticos, especialmente em casos, como o brasileiro, em que os eleitores não têm como acompanhar o comportamento daqueles que seu voto contribuiu para eleger. Isto é particularmente sério nas eleições nacionais não majoritárias, ou proporcionais. Nossas eleições para as câmaras de deputados – a nacional e as estaduais – e para as câmaras de vereadores, que deveriam ser as casas de representações do povo, são feitas para separar os eleitos dos eleitores. Com os sistemas atuais de votos de legendas, praticamente não há como o eleitor conhecer e acompanhar as atitudes e decisões daqueles que seus votos contribuíram para eleger. A reforma política proposta e que deve ser aprovada no congresso nacional deverá aumentar, em vez de reduzir, a separação entre eleitores e eleitos. A volta das coligações partidárias, travestidas de federações de partidos, permitirá, por exemplo, a continuação da vergonhosa apropriação pelos caciques partidários dos recursos dos indecentes fundos partidários, excrecência que os eleitos criaram para continuar a se apropriar de recursos públicos sem ter que prestar contas sobre seus usos.

A recente atitude do nosso Poder Executivo Federal propondo a legalização do pagamento parcelado da maior parte dos precatórios, para os quais o Orçamento Federal deveria prever o pagamento imediato, mostra um exemplo de atitude hipócrita extrema! Precatórios são uma instituição nacional que deveria nos envergonhar a todos; eles são o reconhecimento explícito de que um dos três pilares da democracia, o Poder Judiciário, que junto do Legislativo e do Executivo deveriam funcionar como pesos e contrapesos na manutenção do equilíbrio dos poderes governamentais do país, não está sendo acatado em suas decisões. Quando um processo “transita em julgado” na justiça, isto quer dizer que ela definitivamente decidiu sobre algum direito que passa a ser líquido e certo. Apesar da nossa justiça ser extremamente lenta e permitir que agentes que têm suficientes recursos financeiros possam continuar recorrendo por meio de quase infinitas possibilidades, especialmente os próprios governantes, aquelas pendências que, finalmente, chegam a “transitar em julgado” deveriam ser necessariamente obedecidas, especialmente pelos governos. No entanto, pela criação dos precatórios, os executivos dos três níveis de governos – federal, estadual e municipal – recorrem à vergonhosa postura de alegar que não podem cumprir o que a justiça determinou como um direito líquido e certo das pessoas, instituições ou empresas. Reconhecem a dívida, mas alegam que não podem paga-la!

Em geral, a vergonhosa existência dos precatórios resulta de decisões erradas de agentes governamentais que desrespeitam direitos de entes federativos que atuam sob sua área de governo. Estes agentes governamentais, mesmo quando sabem que estão usurpando direitos líquidos e certos dos entes sob seu governo – pessoas, empresas e outras instituições -, continuam implementando ações que a lentidão da justiça acabará por jogar nas costas de orçamentos que terão que ser executados por futuros governantes. Isto permite aos populistas ofertar “bondades” aos seus eleitores ou, mesmo, benefícios indecentes aos grupos que lhes dão suporte. Fazem isto sem que os respectivos poderes legislativos se lhes oponha, uma vez que os membros deste poder não precisam prestar contas à população que os elegeu em sistemas eleitorais que separa eleito do eleitor. Na ausência do voto distrital, os membros do Poder Legislativo, que deveriam vigiar as ações do Executivo, podem, assim, ser cooptados em seus interesses particulares por benesses oferecidas pelos membros do Poder Executivo. Isto fecha o ciclo vergonhoso do qual a população, ou os eleitores, são as principais vítimas. A eles, sobra a conta a pagar!

Nas palavras de um dos maiores pensadores do Século XX, Sir Bertrand Russel, o escopo de todas as ciências é sua transformação na Física. Em Física é necessário equacionar os fenômenos e poder, sempre, avaliar, ou quantificar, as resultantes ou os novos equilíbrios. Embora estejamos, claramente, emitindo opinião política nesta manifestação, nosso treino em ciência nos sugere tentar mensurar o grau de hipocrisia exibido por grande parte de nossos políticos, especialmente os atuais ocupantes de nosso Poder Executivo. Como exaustivamente denunciado na imprensa, a indecorosa proposta de mudar a lei para permitir ao governo federal não pagar os devidos precatórios (nossas desculpas pelo pleonasmo), além de violar o teto legal dos gastos, tem a finalidade principal de liberar recursos para que o atual Presidente da República possa conceder benesses ao grupo desprivilegiado da população, de forma altamente eleitoreira. Não estamos discutindo se o auxílio às populações de baixa renda é, ou não, necessário. Este subgrupo de nossa população poderia ser assistido de maneira justa sem que para isto o governo precisasse recorrer à violência jurídica de postergar o pagamento dos precatórios, principalmente quando se sabe que muitos dos processos que lhes deram origem duraram muitos anos na “via crucis” característica do sistema judicial do nosso país. Alguns processos duraram até dezenas de anos antes de atingirem seu trânsito em julgado. Como pode ser mensurado, ou medido, o grau de hipocrisia envolvido nesta atitude governamental?

Pode-se, por exemplo, criar e avaliar um Índice da Hipocrisia Orçamentária Brasileira (IHOB). Sua forma algébrica poderia ser:  

IHOB = [1 – ($ Precatórios pagos no ano/$ Precatórios Devidos)]*100  

Os valores entre parênteses são os montantes dos precatórios pagos no ano, dividido pelo montante dos precatórios devidos por aquele nível de governo. O valor do índice vai de zero % – baixa hipocrisia orçamentária – até 100%, com autoridades governamentais totalmente hipócritas. Isto permitiria à população saber que seus governantes, especialmente os membros dos poderes Executivo, que deveria pagar a quem de direito, e o Legislativo, que autoriza sua postergação, exibem comportamento altamente hipócrita no trato da coisa pública.

Uma outra medida da hipocrisia legal brasileira pode ser dada pela exigência de que seus cidadãos devem acreditar em suas polícias: elas – as polícias – deveriam garantir a segurança do cidadão que não precisaria usar armas para se defender. A justiça zela para que o cidadão não ande armado e o condena se ele portar arma de fogo. O princípio fundamental atras desta norma é o de que o cidadão deve acreditar que a polícia lhe protegerá. Desta forma, se um cidadão for pego portando arma, um juiz lhe condenará à prisão! A hipocrisia implícita nesta norma legal é a de que, embora você deva acreditar na proteção policial, você será julgado e condenado se não acreditar, por alguém que não acredita e que carrega arma de fogo para sua proteção! Os juízes e membros do Ministério Público lhe condenarão por portar arma de fogo, mas eles próprios, podem andar armados. Você precisa acreditar na proteção policial a você e sua família. Eles, claramente, não acreditam, tanto que têm permissão legal para portar armas. Como o IHOB acima, é possível avaliar um índice equivalente do grau de hipocrisia dos titulares do Judiciário brasileiro.

Um Índice da Hipocrisia Jurídica Brasileira pode ser dado por:

IHJB = (No. de Armas de Membros do Judiciário/No. de Juízes e Promotores do País)*100 

que vai de zero – baixa hipocrisia jurídica – até 100% – autoridades judiciais totalmente hipócritas[1]. Infelizmente, parece que o processo educacional da população brasileira demorará um longo período até que o povo exija mudanças no comportamento de uma grande parte dos membros dos poderes que formam nossa república. Só um novo círculo virtuoso de exigências da população esclarecida nos tirará do atual equilíbrio perverso que tende a manter os membros dos três poderes da nossa república numa situação de altos níveis de hipocrisia, onde a arte de enganar as massas populacionais é a maior força impulsionadora do populismo que reina no país.

[1] Na possível eventualidade do número dentro do parêntese ser maior que a unidade deve-se considerar o valor como unitário

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