A EXPLORAÇÃO DO TRABALHADOR E A POSSE DA TERRA

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Desde a fundação do Partido Comunista no Brasil, ocorrido na década dos vinte do século passado, uma parte importante da intelectualidade brasileira foi cooptada pelo marxismo ou, pelo menos, aceitou algumas interpretações da corrente de pensamento capitaneada por aquele brilhante idealista. Como marcante criador utopista, na mesma linha que a originalmente idealizada por Platão, Marx sonhou com um tipo de sociedade perfeita. Como grande analista que era, ele propôs conceitos que definiam como os trabalhadores eram explorados pela classe dominante – a capitalista – que se apropriava do que, de direito, deveria pertencer aos trabalhadores. No Brasil, um estudioso e notável seguidor do marxismo na descrição de nossa história, Caio Prado Junior, teve um papel fundamental na divulgação daqueles valores ideológicos, especialmente para os formadores do pensamento jurídico nacional e, consequentemente, do pensamento político prevalente até meados do Século XX. Como conceituado historiador e professor da Faculdade de Direito da USP, a velha academia do Largo de São Francisco, criada por decreto de Dom Pedro I, Caio Prado influenciou fortemente o pensamento analítico nacional, influência esta que extravasou as áreas jurídicas, sendo incorporada às diversas visões políticas que se seguiram e que, ainda hoje, pode ser encontrada em livros textos e de divulgação sobre a história do Brasil.

Uma medida da renda, ou do produto, de uma economia é dada pela soma das remunerações aos chamados fatores primários de produção – (i) ao trabalho, (ii) à terra ou aos recursos naturais, (iii) aos capitais físicos e financeiros e (iv) ao recurso empresarial. O esquema abaixo mostra uma maneira de calcular o Produto Interno Bruto – PIB – uma medida da renda gerada nas economias

O PIB é, desta forma, uma maneira de avaliar o esforço produtivo de uma economia. Ele é a soma, a preços de mercado, das remunerações aos quatro fatores primários de produção da economia que, no Brasil, é oficialmente calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE. Os salários incluem os prolabores quando os donos do negócio desenvolvem funções além da gestão empresarial. Os arrendamentos são, às vezes, chamados de alugueis. Os termos interno e bruto do PIB merecem algumas explicações. Produto Interno, ou doméstico, porque nem tudo que é produzido, ou gerado, no país fica com seus residentes. Uma parte dos fatores primários de produção atuando na economia pode pertencer a residentes de outras economias. O interno se refere ao que é gerado no país. Se o PIB for corrigido pela adição do valor da subconta “Rendas” da conta Serviços do Balanço de Pagamentos – ela mede o saldo líquido das entradas e saídas das remunerações aos fatores primários de produção – o resultado é denominado Produto Nacional Bruto (PNB). É uma medida da apropriação pelos residentes de um país dos produtos ou da renda gerada pelos fatores de produção que lhes pertencem, tanto os localizados no país quanto os localizados no exterior. O bruto refere-se à não correção da medida – PIB – para a depreciação dos fatores produtivos, especialmente dos capitais físicos. Marx utilizou os componentes da renda para mostrar o que ele conceituou como a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas.

Na visão de Marx, toda a renda gerada nas economias deveria pertencer, ou ser apropriada, pelos trabalhadores. A apropriação pelos capitalistas – donos dos recursos naturais, dos bens de capital e dos recursos empresariais – das respectivas remunerações – os arrendamentos ou alugueis, os juros e os lucros – era uma medida da exploração dos trabalhadores pela classe dos donos dos capitais. Ele chamou estas remunerações de Mais Valia. Na sociedade que deveria caminhar para a utopia correspondente a seu sonho – o paraíso comunista – não deveriam existir empresários e as remunerações aos outros fatores de produção recolhidas pelo estado, uma vez que o estado deveria, em nome dos trabalhadores, apropriar-se de eventuais juros e arrendamentos que seriam destinados aos donos da força de trabalho. Todos seriam funcionários públicos e o estado, gerido pelo Partido Comunista, estaria inteiramente voltado para o bem estar dos trabalhadores. Assim, não existiria Mais Valia, ou a apropriação pelos capitalistas dos arrendamentos ou alugueis, dos juros e dos lucros. Toda a renda seria dos trabalhadores!

Como, na visão marxista, a posse dos fatores primários de produção era a forma de criação da Mais Valia – a medida da exploração do trabalhador pelo capitalista – a posse da terra deveria explicar a existência da pobreza nas atividades do agro. Toda sorte de raciocínio foi utilizada para atribuir à posse da terra as causas da desigualdade na distribuição da renda do setor. Foram esquecidas as políticas que empobreceram nosso agro – (i) taxação das exportações já que praticamente todos os itens na pauta das exportações brasileiras eram de produtos primários; (ii) taxas de câmbio supervalorizadas, que penalizavam as exportações do agro e beneficiavam as importações; (iii) tabelamentos dos preços dos produtos da agricultura, com o leite, o feijão, o arroz, bem como todos os produtos das cestas de alimentação brasileiras sendo tabelados; e a (iv) taxação inflacionária, que é particularmente perversa com as camadas mais pobres da população – e a posse da terra era sempre apresentada como a principal causa da pobreza no campo. Todas as resultantes das políticas destinadas a extrair recursos financeiros e humanos do agro para financiar e tripular as cidades foram esquecidas e a posse da terra apontada como a grande vilã da pobreza rural.

A posse da terra, no Brasil, é sempre apresentada como privilegiadora da camada mais rica da população, pelo sistema de sesmarias das capitanias hereditárias que teria gerado o fenômeno do latifúndio. È uma análise viesada, ou intencionalmente errada, porque ignora o fato da maior parte da ocupação privada da terra no país ter ocorrido pelo fenômeno da posse[1]. Exceto pelas áreas destinadas às grandes plantações (plantations) cujas ocupações eram outorgadas pelos líderes das capitanias hereditárias, praticamente todas as demais áreas eram apossadas pelos homens livres. O acesso à terra nunca foi um fator limitante, exceto num curto período do Século XIX, à criação de novas unidades produtivas na agricultura. Mesmo os autores que utilizam a orientação marxista em suas análises, admitem que a simples posse de áreas foi a principal forma de ocupação privada das terras no Brasil; para fornecer animais de tiro, carnes e outros alimentos para os trabalhadores das plantations e dos centros urbanos e mineradoras, além de couros para as exportações e usos domésticos, grande número de unidades produtivas foram criadas em todo o território nacional[2]. Até na segunda metade do século passado ainda era possível ocupar terras muito férteis em diversos estados do país, sem pagar nada ou pagando valores irrisórios, incluindo certas regiões muito férteis do Paraná. Dizer que a posse da terra está na raiz da explicação da pobreza no agro é, simplesmente, um alinhamento ideológico específico com reduzido poder analítico.

 

[1] da Costa, Emilia Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. (9ª Ed.) São Paulo: Editora UNESP.2010

[2] Furtado, Celso. Formação econômica do Brasil. 34ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

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